A casa de “Ainda Estou Aqui” e a evolução urbana do Leblon
As transformações no lote da casa do filme ao longo dos anos ajudam a entender como se deu o desenvolvimento urbano do bairro do Leblon, no Rio de Janeiro.
A participação democrática não pode constituir uma força paralisante. Ao contrário, deve tornar-se uma força propulsora da deliberação do futuro.
25 de janeiro de 2021Uma aliança entre milionários e a esquerda californiana foi capaz de travar um projeto de lei que passaria a permitir o adensamento no entorno dos eixos de transportes das grandes cidades do estado norte-americano. O projeto, cheio de boas intenções, foi proposto por ativistas pró-moradia, os chamados YIMBYs (acrônimo de “Yes In My BackYard)”, que buscam uma solução para a grave crise habitacional que se abate sobre a Califórnia. Resultado: a esquerda denunciou a potencial tendência gentrificadora da iniciativa e os proprietários NIMBYs (Not In My BackYard) das mansões nos arredores das regiões afetadas pela regulação proposta se opuseram veementemente ao desenvolvimento urbano-imobiliário de seus entornos.
O episódio não seria de interesse geral, não fosse pelo fato de que o embate e os impasses ocorridos no Capitólio da Califórnia entre 2018 e 2020 se repetissem em cidades mundo afora, de Mumbai a Shanghai, de Sacramento a São Paulo, e também em Brasília. Vejamos cinco exemplos brasileiros para extrairmos uma possível lição.
Quem presenciou alguma audiência pública sobre o Projeto de Intervenção Urbana (PIU) da Área Central em São Paulo — necessária tentativa de organizar uma possível requalificação do centro — terá percebido que uma grande sinuca também impede o avanço do processo.
De um lado, agentes do mercado imobiliário clamam pela redução dos valores de outorga onerosa (exigida como contrapartida pelo direito de construir para que o poder público possa fazer sua parte na melhoria da infraestrutura local). De outro, entidades de classe, academia e movimentos sociais acusam o governo de entregar de graça o Centro às incorporadoras, e exigem valores mais elevados de outorga.
Na Vila Leopoldina, em São Paulo, projeto de reaproveitamento e reconversão de bairro industrial para uso misto segue travada na Câmara Municipal há um ano e meio. A proposição oferecida por agentes do mercado e da sociedade civil (Grupo Votorantim e URBEM, entre outros) foi transformada em projeto de lei pelo executivo municipal e encontra apoio em amplos setores da sociedade em geral. No entanto, no Legislativo, o projeto empaca dado o enfrentamento que coloca em lados opostos as comunidades vulneráveis da região, amplamente favoráveis à transformação pretendida, e os condomínios de classe média contrária ao assentamento das favelas no próprio bairro.
A tentativa de concessão do complexo do Anhembi foi barrada em 2016, pois, para a base petista de então, uma concessão ao privado seria uma medida liberal demais. Logo em seguida, com a vitória de Doria nas urnas, a concessão é mais uma vez vetada, pois, pela nova gestão, uma concessão seria algo excessivamente intervencionista; o bom seria privatizar. Passam-se (perdem-se) cinco anos para constatar-se efetivamente que de fato o único modelo viável é o da concessão.
No âmbito estadual, o governo enfrenta a paralisia do processo de concessão do Complexo do Ibirapuera, equipamento que há anos sofre com a falta de investimento, desatualização tecnológica, degradação física e subutilização.
A tentativa de concessão, em processo estruturado às pressas e sem o necessário cuidado técnico e político, mais uma vez, coloca em polos opostos aqueles que imaginam que a gestão privada será capaz de rentabilizar o espaço e, a partir dessa perspectiva de remuneração, investir na modernização do complexo e garantir a sua fruição, e os que temem que a privatização comprometerá sua principal função, a de um complexo esportivo público, além de implicar numa possível perda de patrimônio histórico.
No plano federal, buscando desesperadamente reverter situações de impasse em processos aprobatórios, o Ministério da Economia lança serviço de licenciamento de obras a ser conduzido por empresas privadas habilitadas pelo governo, que deverão constituir o “Mercado de Procuradores Digitais de Integração Urbanístico de Integração Nacional”.
Competência municipal por excelência, o licenciamento de obras passa, a partir de agora, a ser exercido, ainda que de forma optativa, pelo mercado, com a interveniência do governo federal. Parece óbvio que, mais uma vez, dificuldades e confrontos advirão dessa medida.
Podemos extrair alguma lição desses episódios longos, tortuosos e ineficientes? Creio que a moral da história é essa: as legislações urbanas mundo afora — planos diretores, zoneamentos, códigos de obra e de proteção histórica — e as formas de legislar envelheceram. Na cidade real, o resultado, conforme afirmam especialistas como Silvio Oksman, “é uma tragédia, uma massa construída absurda, que desconsidera a cidade existente e suas dinâmicas”. Em suma, os procedimentos tradicionais não estão dando conta de situações complexas que envolvem as discussões citadas acima.
O despreparo dos autocratas se manifesta de forma única: pelo desmonte das instituições públicas, ao arrepio de construções coletivas e civilizatórias. Os casos do Ibirapuera e do licenciamento de obras apresentados acima confirmam a irônica e verdadeira máxima de Churchill, para quem “a democracia é a pior das formas de governo, à exceção de todas as demais”.
Também no plano das cidades, não temos alternativa que não seja a de radicalizar a democracia, aumentando, jamais diminuindo os mecanismos de participação, escrutínio e deliberação de projetos urbanos. As novas tecnologias — big data, inteligência artificial e renderização — podem e devem ser mobilizadas em favor de novas formas de governança democrática e não apenas à triste formação de tropéis de golpistas.
A participação democrática não pode constituir uma força paralisante. Ao contrário, com auxílio das tecnologias, deve tornar-se uma força propulsora da deliberação do futuro. Ferramentas de visualização e de simulação de fluxos, mecanismos voltados para a coleta de percepções, necessidades e de dados de interesse das forças sociais e de mercado e, finalmente, processos de decisão coletiva mais diretamente ligados às comunidades interessadas podem constituir a contribuição das novas tecnologias para uma democracia mais radical, que amplie e capilarize os mecanismos de participação e, ao mesmo tempo, favoreça a velocidade e a eficiência da organização dos territórios urbanos.
Philip Yang é fundador do Instituto URBEM.
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