Um Brasil urbano e antifrágil
Foto: Mílton Jung/Flickr

Um Brasil urbano e antifrágil

Infraestrutura urbana robusta e rígida não é o suficiente. Medidas proativas de gerenciamento das consequências de eventos extremos são necessárias para preparar as cidades brasileiras para as mudanças climáticas.

10 de abril de 2025

As cidades brasileiras já estão sentindo os efeitos das mudanças no clima. De norte a sul, ondas de calor, períodos de seca e precipitações intensas estão alimentando, com cada vez mais frequência, os registros de eventos climáticos extremos. Entre janeiro e fevereiro de 2025, enquanto uma onda de calor atingia grande parte do Rio Grande do Sul, a cidade de São Paulo observava a segunda maior chuva em 24 horas (144 mm) desde 1961. Já na Região Norte, em 2023, Belém registrou o segundo menor volume de chuva para o mês de setembro em mais de 60 anos. A deficiência em se adaptar a eventos climáticos extremos fica nítida quando nos atentamos às consequências socioeconômicas associadas a eles. Mesmo sendo um exemplo peculiar, por ser o resultado de uma confluência de fatores, a experiência de Porto Alegre durante as enchentes de maio de 2024 no mostra o quão catastróficas e traumatizantes podem ser as consequências do despreparo da infraestrutura urbana (sistemas de drenagem e proteção contra cheias, distribuição de eletricidade, transportes, governança etc.) em um cenário permeado por incertezas climáticas.

Leia mais: Entendendo as enchentes em Porto Alegre | Parte 1

Quando pensamos em infraestrutura, logo nos vem à mente elementos robustos, rígidos e altamente resistentes a estresses externos como calor, chuva e vento. De fato, pontes, estradas, tubulações de drenagem em concreto e linhas de transmissão de energia elétrica são desenhadas para promover proteção e permitir que serviços públicos sejam oferecidos mesmo diante de condições climáticas adversas. Apesar disso, ultimamente uma dicotomia vem emergindo ao repararmos a frequência na qual as infraestruturas de cidades brasileiras têm falhado em assegurar que os seus habitantes não sejam afetados negativamente por eventos climáticos extremos. Como resultado, bairros ficam vulneráveis a alagamentos, quedas de energia, alterações na disponibilidade de água potável e sem acesso a serviços públicos. Pensando que os impactos negativos já são observados atualmente, o que esperar das cidades brasileiras em um cenário em que eventos que sobrecarregam a infraestrutura serão mais frequentes? Estaremos diante de um futuro distópico, com catástrofes sendo a nova realidade urbana, ou será que há espaço para horizontes mais otimistas com cidades mais resilientes? Embora não seja possível responder a essas perguntas categoricamente, é possível entender parte do problema ao olharmos para o início da expansão urbana brasileira.

O crescimento do Brasil urbano se intensifica entre as décadas de 1950 e 1970. Concomitante à entrada de capital externo para industrialização do país, veio a intensa migração de pessoas de zonas rurais para cidades. Como consequência desse acelerado processo, diversos problemas socioeconômicos são hoje observados por meio da iniquidade de acesso à infraestrutura, de distribuição de renda e déficits habitacionais. O desenvolvimento da infraestrutura urbana, via de regra, foi pautado em dados climáticos limitados e que não reproduzem os mesmos padrões observados atualmente. Além disso, métricas climáticas estão cada vez mais dinâmicas e carregando elevados níveis de incerteza. Um exemplo clássico é a chuva de projeto para dimensionamento de dispositivos de drenagem urbana. Usualmente, assume-se a estacionariedade dos dados históricos de precipitação; ou seja, considera-se que os padrões de chuva futuros repetirão o comportamento dos dados passados em termos estatísticos. No entanto, essa abordagem se torna problemática se olharmos para o caso de São Paulo, por exemplo, onde os volumes de chuva atuais são maiores em comparação ao século passado, o que tem ocorrido através de precipitações mais intensas e concentradas, ou seja, separadas por períodos secos mais longos.

O resultado dessa combinação é nada diferente do que se tem observado em noticiários: eventos extremos cada vez mais estressam a infraestrutura e interrompem dinâmicas urbanas devido a alagamentos, concomitantes a quedas de energia e interrupção de serviços de mobilidade. As implicações práticas no planejamento, seja para adaptação da infraestrutura existente ou para concepção de novos projetos, são de consideráveis riscos no super ou subdimensionamento dos componentes de infraestrutura. Além disso, há chances de alocação de grandes recursos, os quais já são escassos, a projetos de elementos com maiores níveis de proteção, mas que ainda assim serão suscetíveis a falhas.

Alagamento no Centro de Porto Alegre após falhas no sistema de proteção em 2024. Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República

Singularmente, estamos atravessando um momento no desenvolvimento das cidades em que infraestrutura e proteção plena estão se tornando visões incongruentes. A robustez continua sendo importante, mas não o suficiente para razoavelmente responder às mudanças climáticas em cidades brasileiras. Daqui para frente, esforços devem ser direcionados ao melhor convívio com eventos extremos através do gerenciamento de consequências de falha, caso ela de fato ocorra, de modo a elevar a resiliência das comunidades mais atingidas por esses eventos. Em um cenário de alagamentos, por exemplo, deve-se haver mecanismos para que moradores consigam sair de suas casas com antecedência e de forma segura, estratégias para redução de perdas materiais e estabelecimento de cadeias de suprimentos alternativas caso certos bairros percam o acesso a serviços de mobilidade. Esse mesmo exercício pode (e deve!) ser aplicado em situações de interrupções no fornecimento de energia elétrica, de água potável e de mobilidade.

Curiosamente, sob a ótica do gerenciamento de consequências, as questões a serem respondidas na concepção de infraestrutura são diferentes das perguntas que o planejamento urbano está acostumado a responder. Por exemplo, como enfrentar falhas de infraestrutura de maneira gerenciável (proativa) ao invés de maneira catastrófica (reativa)? Em casos de eventos climáticos que sobrecarregam a infraestrutura, quais serão suas consequências sociais, ambientais e econômicas? Caso um serviço seja interrompido, existe possibilidade de efeitos cascata? Quais serão os grupos mais atingidos? Quais recursos podem ser direcionados para atenuação das consequências mapeadas? Andando adiante, órgãos públicos de gerenciamento de infraestrutura urbana devem, de forma integrada, encontrar respostas para essas questões e preparar as cidades brasileiras para as mudanças climáticas.

Parque Barigui, em Curitiba, em 2023. Foto: Ricardo Marajó/SMCS

Como inspirações positivas, podemos olhar para o Parque Barigui em Curitiba, onde áreas recreativas são planejadas para serem alagadas quando o sistema de drenagem urbana é estressado por chuvas intensas. Seguindo o conceito de cidades-esponja, Curitiba se beneficia ao sacrificar um espaço recreacional por alguns dias, ao invés de gerar alagamentos em áreas residenciais. No Rio de Janeiro, o Centro de Operações e Resiliência integra diferentes órgãos municipais para comunicar a sociedade sobre interrupções de serviços públicos e para delinear estratégias de resposta a falhas de infraestrutura, o que contribui para a preparação antecipada de comunidades no enfrentamento de eventos climáticos. Essencialmente, diante da crônica escassez de recursos para a infraestrutura urbana brasileira, exercícios para compreensão dos efeitos climáticos sobre as nossas cidades devem fazer cada vez mais parte do cotidiano do planejamento urbano. Muitas vezes, isso irá envolver a desobstrução de entraves burocráticos que inibem a integração de diferentes órgãos para trabalharem juntos visando objetivos compartilhados na direção de cidades mais resilientes.

Leia mais: Podcast #106 | Centro de Operações do Rio de Janeiro

Mattheus Porto é engenheiro civil e mestre em engenharia com foco em infraestrutura pela UFRGS. Atualmente é estudante de doutorado em Civil, Environmental, and Sustainable Engineering na Arizona State University (EUA).

Este artigo recebeu menção honrosa no Concurso de Artigos do Caos Planejado, realizado em fevereiro de 2025.

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