Territórios defensáveis: o urbanismo e a economia do crime
Foto: Wikimedia Commons

Territórios defensáveis: o urbanismo e a economia do crime

O controle que as organizações criminosas exercem sobre territórios informais no Brasil está ligado à configuração desses espaços e ao planejamento urbano.

3 de novembro de 2025

A dinâmica da economia do crime nas grandes metrópoles brasileiras passa por uma profunda transformação. Segundo especialistas, o foco das organizações criminosas não reside mais primariamente no tráfico de drogas, mas sim na “prestação de serviços” em territórios que conseguem controlar. Esse problema — reforçado pelas últimas notícias sobre a devastadora operação do Estado do Rio de Janeiro nos bairros da Penha e do Alemão — foi apontado por Rodrigo Pimentel em sua recente apresentação “Follow the Money: economia da bandidagem cresce e aumenta a sensação de insegurança”, à qual pretendo acrescentar uma visão espacial neste artigo, com uma analogia ao trabalho do arquiteto Oscar Newman no livro “Defensible Space”.

A tese central de Oscar Newman é que o desenho físico pode reforçar a capacidade de moradores exercerem controle informal e positivo sobre o espaço. Na maioria dos assentamentos informais brasileiros, algumas qualidades físicas acabam sendo apropriadas por grupos criminosos, que passam a exercer eles próprios a territorialidade e a vigilância. Abaixo, as características que, sob a ótica de Newman, tendem a favorecer esse domínio:

• Morfologia labiríntica e baixa legibilidade;
• Múltiplos pontos de acesso e alta permeabilidade espacial;
• Topografia acidentada com posições dominantes;
• Ambiguidade de domínio entre público, semipúblico e privado;
• Densidade por acesso muito alta;
• Rupturas na “vigilância natural” positiva;
• Cul-de-sac, becos sem saída e gargalos;
• Acessibilidade veicular limitada e controle de fluxos;
• Tramas construtivas irregulares e verticalização adensada;
• Interfaces com áreas de difícil fiscalização;
• Sinalização, endereçamento e numeração precários;
• Estigma e baixa presença institucional;
• Usos do solo concentrados e horários “vazios”.

Como essas características se convertem em mecanismos de controle?

  • Postos de observação naturais: topos de morro, lajes e cruzamentos com amplo campo visual operam como nós de vigilância. 
  • Sistema de alerta distribuído: a morfologia permite linhas de visão/escuta e redundância de rotas, dando vantagem na detecção precoce de incursões. 
  • Gatekeeping nos gargalos: becos, escadarias e acessos estreitos funcionam como filtros para identificar/afastar “estranhos”. 
  • Coaptação da territorialidade: a ambiguidade entre público/privado dá margem à imposição de “regras de uso” por atores não estatais, substituindo normas formais por normas locais. 
  • Deterrência (ato ou efeito de impedir uma ação, principalmente através da intimidação ou da ameaça de uma retaliação) pela opacidade: baixa legibilidade e sinalização desestimulam a entrada de pessoas/serviços que poderiam diversificar usos e ampliar a vigilância positiva.
Rua estreita de uma favela no Rio de Janeiro. Foto: Tânia Rego/Agência Brasil

Os territórios controlados pelo crime funcionam como verdadeiras “reservas de mercado” cativas, onde a população local, muitas vezes sem alternativas, fica à mercê das regras impostas por esses grupos. Isso se dá no fornecimento irregular de energia (os gatos), no sinal de internet, nos botijões de gás, no pão francês, no gelo, no transporte alternativo, no cigarro paraguaio, na proteção ao comércio local, entre outros elementos passíveis de serem fornecidos de forma monopolística. O alto volume das transações financeiras resultantes dessas economias ilegais exige sua “lavagem” através do sistema financeiro, indicando a necessidade inadiável de combater essa dinâmica e desarticular essas reservas de mercado criminosas.

Leia mais: Cidades sob regras paralelas: o urbanismo nas áreas de facção

A questão central é: por que esses grupos conseguem controlar esses territórios de forma tão eficaz? A resposta é clara: são territórios defensáveis. Essa defensibilidade, arquitetônica e urbanisticamente, pode ser analisada sob qualquer princípio do CPTED (Crime Prevention Through Environmental Design), que estuda como o design do ambiente pode influenciar o comportamento criminoso. Ruas estreitas e labirínticas, habitações adensadas e empilhadas, ausência de endereços formais e a precariedade ou ausência de serviços públicos básicos — como água, energia, esgoto, e transporte público decente — criam um cenário ideal para o controle territorial por grupos armados (como um dia foram as cidades medievais, com suas barricadas, seteiras, valas e armadilhas). Essas características dificultam o acesso e a vigilância pelas forças de segurança do Estado, favorecem o esconderijo e o uso da população como escudo, ao mesmo tempo em que facilitam a observação e a imposição de regras pelos grupos que dominam.

Semelhanças no traçado de uma cidade medieval e uma favela no Brasil. Imagens: Google Earth

Paradoxalmente, a legislação urbana vigente no Brasil frequentemente favorece (e até estimula) a formação de territórios informais onde as leis urbanísticas formais se tornam inoperantes. Isso ocorre porque uma vasta parcela da população simplesmente não pode arcar com os custos do “urbanismo legal” – seja o preço do solo, os padrões construtivos ou as taxas. No município de São Paulo, por exemplo, o IBGE aponta que 1,7 milhões de pessoas vivem em áreas informais, um número maior que toda a população da cidade de Porto Alegre ou de Recife. Essas áreas são construídas sob o critério do menor custo possível, resultando em condições precárias que, ironicamente, criam um ambiente propício para a consolidação do poder paralelo.

Diante desse cenário, é imperativo transcender o debate de “soluções” urbanísticas difusas e paliativas. Precisamos nos concentrar no que realmente interessa, que é como o urbanismo pode e deve contribuir para a redução da criminalidade, impactando toda a cidade. É preciso:

  1. Repensar o financiamento da expansão urbana: O poder público deve parar de financiar a expansão desordenada das cidades para as periferias, que perpetua a informalidade e a segregação, priorizando a requalificação dos tecidos urbanos existentes. (Mais cidade onde já existe cidade.)
  2. Incentivar o adensamento qualificado: A legislação deve ser flexibilizada para permitir e incentivar o adensamento espontâneo em áreas já urbanizadas e bem servidas por infraestrutura. Toda a lei de zoneamento deve ser repensada, revista e simplificada – incluindo as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) e programas de Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social (ATHIS), que permitem a adequação e melhoria de moradias existentes em padrões acessíveis e seguros –, concentrando-se apenas em algumas externalidades possíveis na construção de novos edifícios na cidade.
  3. Apoiar o pequeno proprietário e empreendedor: É crucial dar atenção especial e fomento ao pequeno proprietário e empreendedor urbano nesses territórios (e em todos os demais territórios das cidades), oferecendo acesso a crédito, capacitação e desburocratização para a formalização de seus negócios e moradias.
  4. Garantir mobilidade decente: O poder público deve investir em transporte público eficiente, calçadas acessíveis e infraestrutura viária que conecte de forma decente todos os territórios das cidades, integrando-os economicamente e socialmente.
  5. Recuperar e urbanizar territórios informais: Temos que considerar a realidade. Esses espaços foram construídos e existem, sendo local de moradia de milhões de brasileiros. A medida mais urgente é a recuperação e urbanização integrada desses territórios. Isso inclui regularização fundiária (REURB) para garantir a segurança da posse, a implantação de infraestrutura completa (saneamento básico, drenagem, iluminação pública, pavimentação), a provisão de equipamentos públicos (saúde, educação, lazer) e a promoção de espaços de convívio que fortaleçam o senso de comunidade e a presença do Estado. Tais ações visam desmantelar as “reservas de mercado do crime”, devolvendo esses territórios e a dignidade a todos os cidadãos que os habitam.

Leia mais: Combatendo o crime sem policiais: o papel fundamental do espaço urbano

Os alertas são cada vez mais evidentes. A economia do crime cresce, sofisticando-se e aprofundando a sensação de insegurança. É fundamental que as políticas urbanas (e nossos legisladores) reconheçam o papel crítico da formalização e da integração territorial como estratégias centrais de segurança pública, civilidade e desenvolvimento sustentável. Não há sustentabilidade possível na atual situação.

Sua ajuda é importante para nossas cidades.
Seja um apoiador do Caos Planejado.

Somos um projeto sem fins lucrativos com o objetivo de trazer o debate qualificado sobre urbanismo e cidades para um público abrangente. Assim, acreditamos que todo conteúdo que produzimos deve ser gratuito e acessível para todos.

Em um momento de crise para publicações que priorizam a qualidade da informação, contamos com a sua ajuda para continuar produzindo conteúdos independentes, livres de vieses políticos ou interesses comerciais.

Gosta do nosso trabalho? Seja um apoiador do Caos Planejado e nos ajude a levar este debate a um número ainda maior de pessoas e a promover cidades mais acessíveis, humanas, diversas e dinâmicas.

Quero apoiar

LEIA TAMBÉM

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.