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Por que o uso do transporte público em Curitiba ainda é tão baixo?
Conhecida por seu inovador sistema de transportes, Curitiba apresenta hoje dados que não refletem essa reputação. Neste artigo, procuramos entender o porquê.
A capital paranaense, Curitiba, é uma cidade que se tornou referência para os urbanistas brasileiros. Isso se deu principalmente a partir dos projetos executados por Jaime Lerner, arquiteto que foi prefeito da cidade. Sua visão representava uma quebra de paradigmas em relação ao planejamento modernista e rodoviarista que predominava nas cidades brasileiras no século 20.
Nos anos 1970, Jaime Lerner realizou, por exemplo: a pedestrianização da Rua XV de Novembro, a implantação de parques públicos e a inauguração de um novo sistema de transporte público. Lerner defendia cidades com menos carros, com usos mistos e mais densas, aproximando as distâncias de deslocamento. Apesar dessas serem ideias consolidadas no urbanismo atual, na época elas divergiam totalmente do pensamento predominante.
Talvez o feito mais conhecido de Jaime Lerner tenha sido o sistema de ônibus por vias exclusivas em Curitiba. A Rede Integrada de Transporte (RIT) e o sistema de ônibus expresso, conhecido hoje como BRT (Bus Rapid Transit), se tornaram uma marca da cidade e serviram como modelo e inspiração para muitas outras ao redor do mundo. A ideia do sistema é ser como um metrô de superfície, com a vantagem de que exige um custo muito menor.
Com esse histórico revolucionário de gestão de transportes e um modelo que chamou atenção internacional, alguns dados atuais de Curitiba parecem confusos ou contraditórios. Na cidade que aparentemente tinha tudo para ter uma das maiores taxas de utilização do transporte público, apenas 25,2% das pessoas utilizam esse modal. Enquanto isso, 48,5% da população utiliza o automóvel individual em seus deslocamentos. Os dados são do Estudo Mobilize 2022, que também mapeou a divisão modal de outras cidades brasileiras, dentre as quais Curitiba teve uma das maiores taxas de utilização do carro. A média de carros por habitante em Curitiba é quase o dobro da média nacional, segundo dados do Detran-PR e do IBGE de 2022.
Por que Curitiba apresenta hoje uma realidade tão diferente do que era esperado a partir da sua história e da sua boa fama entre os urbanistas?
Primeiro, como explica a pesquisa, é preciso entender o nível de implantação desse sistema de transporte, que foi muito além dos corredores com faixas exclusivas. Todo o planejamento urbano da cidade se apoiou nele por meio da regulação do uso da terra no Plano Diretor. Uma vez que os eixos de transporte estavam estabelecidos, eram permitidas maiores densidades e usos diversificados especificamente ao longo deles. É o chamado “Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável”, ou “DOTS”. Nessa ideia, a construção é restrita dentro dos bairros, nas partes não adjacentes aos eixos. O resultado dessa regulação fica evidente nas imagens aéreas de Curitiba, com corredores verticalizados ao lado de áreas bem mais horizontais. Embora a verticalização, por si só, não signifique uma densidade demográfica maior, ela foi um dos instrumentos utilizados para permitir um maior potencial construtivo nesses terrenos.
O problema do DOTS, como corrobora a pesquisa, é a premissa de que a expansão urbana deve seguir a oferta de transporte, e não o contrário. Em entrevista para o Caos Planejado, o urbanista Alain Bertaud explica que o tipo de ocupação do solo que viabiliza um determinado sistema de transporte não necessariamente vai ser bom para as pessoas.
Após a implantação desse sistema em Curitiba, a cidade ainda cresceu muito, e foi de 360 mil habitantes em 1960 para mais de 1 milhão de habitantes em 1980. O BRT continuou sendo amplamente utilizado, e a alta demanda gerou, inclusive, debates sobre a possibilidade de construção de uma linha de metrô em seu lugar. A ocupação territorial, no entanto, não se deu conforme o planejado.
Essa incapacidade de controlar a ocupação por meio do transporte, apontada por Alain Bertaud, fica evidente em alguns dados de Curitiba mostrados na pesquisa de Fábio Duarte e Clovis Ultramari. Após 40 anos da implantação do sistema, não parecia haver uma relação direta entre as densidades e o uso dos corredores de ônibus. As áreas adjacentes aos eixos de transporte apresentavam uma densidade menor que outras grandes ocupações distantes dos eixos. Após a análise dos dados, a pesquisa chegou à conclusão de que a grande maioria dos usuários do BRT de Curitiba (80%, aproximadamente) na verdade não moram perto dos eixos do sistema de transporte e precisam usar outras linhas de ônibus para chegar até eles.
Por terem um maior potencial construtivo, os terrenos adjacentes aos corredores de ônibus foram os mais valorizados. A pesquisa apontou que a atratividade desses terrenos aparentemente se deu muito mais pelo potencial construtivo e pela proximidade do centro do que pela facilidade do transporte público em si, visto que são as áreas que apresentam maior posse de carros por habitante. Para piorar, entre 1997 e 2003, quase todos os projetos de habitação social construídos em Curitiba não estavam integrados aos eixos do BRT.
Somado a isso está o problema do espraiamento. Com uma restrição de adensamento até mesmo a 2 quadras dos corredores de ônibus, a ocupação da cidade de Curitiba se espalhou. Hoje, a cidade passa por um problema comum a outras grandes capitais: o crescimento da região metropolitana é maior do que o da cidade em si, apesar dela continuar concentrando a maioria das oportunidades. Isso indica que muitos dos usuários do BRT nem sequer moram em Curitiba, e o utilizam como apenas uma parte de suas longas viagens diárias.
A pesquisa conclui explicando o porquê dos usuários do BRT não morarem perto dos eixos de transporte, contradizendo o próprio objetivo do plano: há uma “discrepância em termos de zoneamento e uso do solo e realidade socioeconômica”. Isso também explica a questão principal deste artigo, que é o fato de que a maioria dos habitantes da capital não utiliza o transporte público, apesar de existir um sistema que deveria favorecer esse uso.
Assim como no resto do país, o número de passageiros do sistema de transporte público de Curitiba está diminuindo, e caiu de 23 milhões de passageiros em 2010 para 9,3 milhões em 2024. Apesar disso, ainda há um excesso de usuários nos horários de pico, o que é um problema. O preço e o tempo de viagem também são outros fatores que estão sendo associados a essa diminuição de usuários. Enquanto isso, o número de automóveis por habitante cresce na cidade.
Apesar de atualmente haver uma tentativa de criar novas linhas e integrar melhor os modais para incentivar o uso do transporte coletivo, é preciso entender o cerne da questão. A ideia do BRT e do Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável certamente representa um avanço em relação ao planejamento urbano rodoviarista, mas possui falhas cruciais. A tentativa de controlar densidades e uso do solo com restrições em áreas ainda bem localizadas, a dificuldade de conciliar acessibilidade e moradia para pessoas de menor renda e o consequente espraiamento, com muitos morando na região metropolitana e trabalhando na cidade, são pontos a se considerar.
No caso do BRT de Curitiba, que um dia já foi inspiração internacional, essas falhas estão minando a sua própria razão de existir. Por isso, quando analisamos a divisão modal das cidades brasileiras, Curitiba não se mostra em vantagem no que diz respeito a uma ampla utilização do transporte público por seus moradores.
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