Em julho de 2023, fui a Roterdã, cidade localizada ao sul da Holanda, sede do maior porto marítimo da Europa, que foi reconstruída após a sua quase total destruição pelos alemães em 1940. O Museu Depot Boijmans Van Beuningen, ou simplesmente DEPOT, situado no Parque dos Museus, foi concebido em 2021, pelo escritório MVRDV. Além de sua encantadora solução volumétrica, tecnológica e de implantação, o museu oferece uma experiência aos visitantes extremamente instigante e promissora! É sobre esta experiência que quero dialogar com vocês. oltando-a para a realidade de nossas cidades brasileiras!
Pelo lado de fora, o museu, em forma de tigela em vidro reflexivo, registra e reverência a cidade ao redor, deflagrando seus espaços públicos, seus jardins e arquiteturas e, mais do que isto, as pessoas dentro deles.
Olhar de fora o museu é uma brincadeira divertida que oferece muitos visuais, inusitados e belos. Pelo lado de dentro, milhares de objetos pertencentes à coleção particular do museu, das mais variadas categorias – artes plásticas, vestimentas, máquinas, utensílios domésticos, esculturas, vídeos, etc e, dos mais variados materiais – são expostos e, mais do que isto! Eles propõem uma inter-relação com o visitante extremamente interessante. Um enorme hall central, com aproximadamente 40 metros de altura, organiza e conecta percursos temáticos, trajetórias visuais, estímulos sensoriais, tudo junto e ao mesmo tempo. Pisos, caixas de elevadores, escadas, vitrines expositivas, divisórias de salas de exposição, salas de arquivo, salas de manutenção e restauro… tudo em vidro! Tudo em movimento! O livre percurso escolhido pelo olhar do observador tem permissão para percorrer objetos de forma temática, ou histórica ou técnica-fabril. Obras de arte, objetos, e pessoas visitando o mesmo espaço… são todos elementos expositivos…são todos parte do acervo…elementos de comunicação…elementos de interconexão!
Confesso, neste momento, ao correr meus olhos para cima e para baixo, rodar 360 graus pelo espaço, esbarrar com solas de sapato sobre a minha cabeça e minutos depois com telas e objetos de design, que eu me senti realmente parte do acervo expositivo. Eu e todos aqueles visitantes que ao meu redor, ocupavam o espaço do mesmo modo, no meio de todas aquelas obras… Somada a esta incrível sensação, mais uma surpresa: a expografia adotada dá a mesma relevância de oportunidade ao observador de se relacionar com a frente e com o verso de uma obra, ou, em outras palavras, com o principal e o difuso, com a figura e o fundo, com o explícito e o oculto… Muitas vezes dediquei mais tempo ao verso de uma tela, onde estampas e carimbos de viagem e anotações de restauro e do seguro da obra me relataram e contextualizaram tamanha riqueza acessória que acabou por dar outro colorido e densidade àquela pintura!
O auge desta experiência se deu, quando, ao longo do meu trajeto pelos temas, materiais, tempos históricos, diversos materiais e mídias, e diferentes manifestações artísticas, deparei-me com uma sala que justamente referenciava o avesso das coisas, enaltecendo os emblemáticos cavaletes de vidro da arquiteta Lina Bo Bardi, que aparecerem pela primeira vez na pinacoteca do Museu de Arte de São Paulo (MASP) em 1968. Neste momento, esta experiência até então situada com tanta força no universo europeu deslocou-me abruptamente para o Brasil com toda sua potência, criatividade, orgulho, oportunidades e também letargia… Esta simples sensação que me invadia, e que de simples não tem nada, fez-me pensar em como os elementos que compõem um espaço têm ou podem ter a condição de serem protagonistas neste território… É uma questão de propósito, de acesso, de linguagem e de desenho… E é sobre este aspecto que esta reflexão tem foco, convidando vocês a um passeio pelos nossos Brasis. Especialmente aqueles Brasis que ocupam o avesso das coisas, de forma oculta, silenciosa, invisível.
Proponho um exercício, dedicando um certo esforço: perguntar a si próprios quais seriam os temas que historicamente têm sido colocados no avesso das coisas que são ou poderiam/deveriam ser protagonistas de nossas histórias, em nossas cidades brasileiras?
Ou seja, os temas que insistentemente coexistem com a história e a espacialidade de nossas cidades, mas que, apesar de fisicamente presentes, são considerados por nossas atitudes ou pela ausência delas, como invisíveis… Arrisco alguns deles: As ocupações irregulares, que apesar de fisicamente visíveis, não são vistas o suficiente para que possam ser enfrentadas, permanecendo em pleno processo de expansão, agravando progressivamente as condições de saneamento, preservação ambiental e inclusão social.
Os rios ocultos, que colaboram com nossa memória histórica e territorial esfacelada, apesar das enchentes, deslizamentos de terra, falta d’água nos reservatórios, etc. Os espaços públicos, que apesar de espacialmente presentes, ocupam no cotidiano de nossas cidades um lugar oculto, sem dono, esquecido “atrás” dos muros dos condomínios. As áreas verdes, parques e praças, que diuturnamente amanhecem e adormecem, em sua grande maioria, vazios, onde existem e, em muitas regiões da cidade, ausentes. As calçadas, as esquinas, que igualmente existem, permanecem e envelhecem nas cidades sem oferecerem condições adequadas de usufruto. O patrimônio histórico-cultural e paisagístico, que se deteriora ou desaparece muitas vezes sem deixar saudades. O acesso à habitação, à educação, à cultura, ao lazer e ao ócio. E por fim, faz-se oculta, no avesso de todas as coisas, a responsabilidade, dentre a diversidades de vozes que compõem nossas cidades, pelo bem comum… Na mesma toada, convido-os a revisitarem vossos percursos rotineiros e cotidianos e tentarem responder, silenciosamente se, ao realizá-los, é possível reconhecer o avesso do que habitualmente se vê… Saudações Polifônicas!