Uma breve história das cidades-satélites de Brasília
O desenvolvimento urbano da capital foi muito além do Plano Piloto, mesmo antes de sua inauguração.
O urbanismo segregacionista do apartheid sul-africano evidencia o impacto duradouro do planejamento urbano, destacando a importância de considerar cuidadosamente o design urbano para evitar efeitos prejudiciais a longo prazo.
10 de junho de 2024Muitas vezes esquecemos ou não percebemos o impacto que o planejamento urbano pode ter na vida das pessoas no longo prazo. Enquanto um edifício, de maneira geral, tem uma vida útil entre 50 e 100 anos, a estrutura urbana, depois que planejada e implementada, dificilmente sofrerá modificações significativas, mesmo em casos extremos, como os de cidades que foram completamente bombardeadas durante alguma guerra. Claro que uma via pode ser ampliada ou modificada para se tornar mais caminhável ou para criar corredores de ônibus, ciclovias, entre outros. Mas se a estrutura está originalmente mal desenhada ou mal posicionada, com poucos pontos de conexão internos ou desconectada do tecido urbano, por exemplo, o potencial impacto de qualquer melhoria fica seriamente limitado.
Provavelmente o maior exemplo do potencial impacto (nesse caso, negativo) do planejamento urbano tem suas raízes no regime do apartheid sul-africano. É, inclusive, a razão pela qual decidi me converter ao urbanismo completamente, conforme mencionei no meu último artigo. O regime, que esteve no poder entre 1948 e o início dos anos 1990, e teve como principal objetivo segregar as vidas de brancos, negros e outros grupos na África do Sul, baseou grande parte de suas ações no planejamento urbano. O “Group Areas Act” (Ato das Áreas) de 1950, dividiu as áreas urbanas em “áreas de grupo”, nas quais a propriedade e a residência eram limitadas a determinados grupos populacionais. O processo de separação, porém, já tinha iniciado muito antes, com o “Natives (Urban Areas) Act” de 1923 (Lei dos Nativos (Áreas Urbanas)), que considerou as áreas urbanas da África do Sul como “brancas” e exigiu que todos os homens africanos negros nas cidades e vilas andassem sempre com autorizações chamadas “passes”.
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Entre outros, o Ato definia como as cidades sul-africanas deveriam estar estruturadas. Simplificando, a cidade estaria conformada em círculos. Os brancos ficariam nos bairros mais centrais, desfrutando não só de altos níveis de serviços públicos e infraestruturas, como também das melhores conexões rodoviárias. Após uma separação apoiada por algum elemento da topografia (poderia ser um rio, um vale, ou um cerro), o segundo “grupo racial” de cada região seria alocado. No caso de Durban, onde morei, seriam os indianos, que chegaram há mais de 300 anos para trabalhar nas plantações de cana-de-açúcar. Finalmente, após outro elemento da topografia, seria onde as diferentes etnias africanas estariam alojadas – no caso de Durban, especialmente a Zulu.
Como Durban fica na costa do Oceano Índico, não teve círculos completos, senão semicírculos partindo da costa que seguiam fielmente o preconizado no Ato. Pode-se observar claramente essa estrutura na figura abaixo, onde bairros como KwaMashu ou Umlazi estão há vários quilômetros dos principais nós rodoviários. Para reforçar ainda mais a segregação, o regime adotou uma política de baixa densidade, especialmente nos bairros mais longínquos, além de separar os diferentes grupos entre si – tudo isso também para diminuir a possibilidade de uma revolta contra o governo.
O apartheid caiu faz mais de 30 anos, mas o seu impacto ainda hoje é irrefutável. Em Durban, nos bairros de maioria branca, em média mais de 90% das famílias são brancas, e nos bairros de maioria negra, a proporção de famílias negras também é de 90%. É um cenário extremamente difícil de mudar, especialmente considerando que a mobilidade social ainda é limitada, e muitas vezes acaba exacerbando ainda mais o problema. Não é incomum que pessoas dos bairros longínquos que enriquecem se mudem para os bairros mais bem localizados, enquanto pouco é feito para melhorar e conectar as comunidades mais vulneráveis. Nesse caso, nem o forte crescimento populacional, que acabou integrando quase que “por osmose” bairros que eram originalmente desconectados (caso de vários condomínios habitacionais no Brasil dos anos 50), teria a escala suficiente para fazer cidades como Durban terem um único tecido urbano e pelo menos reduzirem a segregação existente. Além disso, estudos demonstram não só o impacto negativo de nascer ou crescer em um bairro com menos acesso, mas também o quão difícil é mudar de bairro, mesmo que as condições sejam favoráveis. Ambos os temas foram cobertos em detalhes no livro Boa Economia para Tempos Difíceis, de Abhijit Banerjee e Esther Duflo, entre outros.
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Por sorte (e consciência, espero), hoje em dia, atrocidades como o apartheid, pelo menos na escala do que ocorreu na África do Sul, já não ocorrem. Porém, não é difícil ver que muitas das medidas adotadas pelo apartheid estão bastante vivas e continuam a ser repetidas por muitas cidades ao redor do mundo. Por isso, guardadas as devidas proporções, ao traçar aquela rua, antes de planejar um novo bairro ou ao definir um novo cruzamento, pense muito bem.
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