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De meados do século XX até os dias de hoje, o tempo perdido no trânsito tornou-se uma das principais fontes de sofrimento da vida urbana. Historicamente, a fórmula clássica para combater esse problema foi adicionar cada vez mais faixas de carro e construir viadutos com a promessa nunca realizada de melhorar a fluidez.
A consequência já está bem documentada, cada nova faixa de carro adicionada representa uma barreira a outros meios de transporte e maiores distâncias a serem percorridas por todos. O resultado é a indução da demanda, um convite para que cada vez mais pessoas desejem se locomover por automóvel.
E não apenas isso, mesmo quando se consegue momentaneamente entregar a prometida melhora na fluidez, os beneficiados tendem a dirigir mais vezes e por maiores distâncias, o que também acaba contribuindo para o agravamento do problema no futuro.
Dessa forma, seria a tormenta de ficar preso em um congestionamento e perder horas preciosas do dia uma fatalidade inescapável da vida urbana moderna? Para uma boa parcela da população existe uma opção mais democrática, acessível, econômica, saudável e com resultados melhores.
Por incrível que pareça, a chamada mobilidade ativa, a qual usualmente engloba bicicleta e caminhada, quando representada pela magrela, em algumas situações, consegue ter tempos de deslocamentos mais rápidos do que os motorizados. Prova disso é que a bicicleta costuma ter os melhores resultados nos desafios intermodais realizados em diversas cidades brasileiras, já tendo superado até mesmo um helicóptero.
Todavia, a alta velocidade não costuma ser um atributo vantajoso da bicicleta e menos ainda da caminhada. Esses desafios geralmente ocorrem em horários de rush, em trajetos sem muitas subidas e são feitos por ciclistas experientes. Portanto, o grande diferencial da mobilidade ativa é que, apesar de todas as maravilhas das tecnologias incorporadas nos veículos automotivos, o corpo humano e seus músculos continuam sendo o melhor motor para proporcionar ganhos de bem-estar.
Pesquisa feita com estudantes e funcionários da Universidade da Califórnia aponta que a caminhada e a bicicleta são os modos de transporte que propiciam experiências mais agradáveis. Na cidade de São Paulo, estudo similar verificou que ciclistas vivenciam sensações de bem-estar no deslocamento, como prazer, relaxamento e satisfação, numa proporção que é o dobro daquela verificada na população geral da cidade.
Pesquisa realizada com 3.330 cidadãos de 8 países europeus também encontrou notas de satisfação mais elevadas para bicicleta e caminhada. Os selecionados avaliaram com notas de 1 a 5 o nível de satisfação com suas viagens diárias.
A bicicleta ficou em primeiro lugar com nota média de 4,06, seguido pela caminhada com 3,99 e os passageiros de trem com 3,89. As duas piores notas foram dadas pelos motoristas de carro e usuários de ônibus, ambos pontuando 3,53 em média.
Outra prova da superioridade dos modos de deslocamento ativos para propiciar bem-estar tem sido constatada através de perguntas sobre teletransporte. Questionário online aplicado em Portland, nos EUA, indagou a 648 pessoas se elas renunciariam aos seus deslocamentos diários, caso pudessem se teletransportar como nos filmes de ficção Star Trek. O resultado foi uma recepção ao teletransporte de 76% entre usuários do transporte público, de 73% entre motoristas de carro, mas de apenas 34% entre ciclistas e de 27% entre caminhantes.
Se não bastasse, existem indicativos de que essas experiências positivas vivenciadas através da mobilidade ativa podem extrapolar a duração da própria atividade. O professor Robert Thayer, da Universidade da Califórnia, pesquisou por vários anos a relação entre humor e exercícios.
O seu livro Calm Energy relaciona uma série de evidências de que uma simples caminhada ajuda a melhorar o humor e a disposição, com efeitos prolongados por 1h ou 2h após o término do exercício.
Também existem evidências de que os ganhos com o bem-estar possam ser ainda mais prolongados e enriquecedores. Pesquisa realizada pelo mesmo Robert Thayer e Joan Rubadeau sugere que, após uma caminhada ou atividade física, as pessoas tinham tendência a avaliar mais positivamente a própria vida.
Talvez isso explique por que estudo de Martin Turcotte encontrou que 19% dos canadenses que pedalavam para o trabalho encaravam essa atividade como a melhor de todo o dia, enquanto somente 2% dos motoristas colocavam o ato de dirigir no patamar mais alto da satisfação.
Nessa perspectiva, o projeto Motiv com apoio da União Europeia propõe que outras dimensões dos deslocamentos também devam ser avaliadas. Para isso utilizam como referência a hierarquia das necessidades de Maslow, onde na base da pirâmide estão as necessidades fisiológicas, depois de segurança e, à medida que se vai ascendendo, as pessoas procuram realizações mais sofisticadas de relacionamentos, estima e autorrealização.
Nesses quesitos, a mobilidade ativa também costuma se sair melhor. Estudo publicado na revista Mobilidade Aplicada indica que os ciclistas possuem maior propensão a experimentar um estado mental de flow, desencadeando maior concentração, interação com o ambiente, maior criatividade e elevada sensação de autoestima. Já quem caminha, além dos ganhos de bem-estar proporcionados pela atividade física tem melhor perspectiva de interação social dentro do balé urbano tão bem descrito por Jane Jacobs.
Por isso, ainda que o tempo gasto na mobilidade ativa possa ser maior do que o do transporte motorizado, se a vivência desse tempo for agradável ou satisfatória, tem-se, na verdade, o melhor dos mundos, já que o tempo perdido no trânsito passa a ser zero.
Afinal, o tempo só é encarado como perdido na medida em que a experiência é vista como negativa. Ou alguém já viu alguma política pública ser implementada para tentar acabar com o tempo perdido em praias ou parques?
Dessa forma, resta saber qual o potencial da caminhada e da pedalada no Brasil. Conforme dados da Associação Nacional dos Transportes Públicos (ANTP), em média 42% dos brasileiros de cidades com mais de 60 mil habitantes se deslocam por bicicleta ou a pé, percentuais maiores do que em muitas cidades europeias.
Assim, políticas públicas que aprimorem a qualidade e a segurança dessas formas de locomoção irão contemplar parcelas expressivas da população, ainda mais quando se considera que quem usa o transporte público também caminha por uma parte do trajeto.
E não apenas isso, uma ampla e boa infraestrutura cicloviária têm enorme potencial de atrair novos usuários. Na cidade do Rio de Janeiro, 51% dos deslocamentos motorizados individuais têm potencial de serem substituídos pela bicicleta, pois 40% deles são tidos como facilmente pedaláveis e outros 11% são classificados como pedaláveis. Para a cidade de São Paulo, o potencial de substituição seria de 42%, sendo 33% como facilmente pedaláveis.
Nesses estudos, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) considera que viagens de até 5 km, feitas por pessoas de até 50 anos e entre as 6h e 20h são facilmente pedaláveis e as viagens de até 8 km são classificadas como pedaláveis. O levantamento aponta ainda que 31% dos paulistanos adotariam a bicicleta se houvesse melhor infraestrutura cicloviária.
Portanto, é chegada a hora do poder público abandonar as formas corriqueiras de se combater o tempo perdido no trânsito. Investir em mais viadutos e faixas de trânsito para veículos particulares, além de extremamente dispendioso, já se mostrou um retumbante fracasso.
A medida induz à demanda pelos carros, ao mesmo tempo, em que torna mais lento o transporte coletivo e empobrece ou inviabiliza as experiências mais satisfatórias da mobilidade ativa.
As soluções realmente efetivas passam por tornar o transporte público mais rápido que o particular, investir em modos e condições de locomoção que propiciem uma maior chance de se obter experiências aprazíveis, bem como ampliar e melhorar a infraestrutura urbana destinada à mobilidade ativa.
Essas alternativas, além de serem as únicas a realmente atacarem o problema, são mais econômicas, democráticas, ambientalmente sustentáveis e trazem maior bem-estar pessoal e coletivo.
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