Mais um Maio Amarelo acabou. E o que mudou nas cidades?
Após o mês do movimento de conscientização para a redução de acidentes de trânsito, precisamos refletir sobre como temos lidado com esse problema.
Adis Abeba, capital da Etiópia, tenta transformar sua mobilidade urbana por meio do desenvolvimento de corredores de transporte, incentivando o andar a pé, a bicicleta e o transporte coletivo.
3 de julho de 2025As cidades africanas estão entre as que crescem mais rápido no mundo e, ao mesmo tempo, entre as mais carentes em infraestrutura de transporte. O Banco Africano de Desenvolvimento estima um déficit anual de US$ 100 bilhões em investimentos em infraestrutura, mesmo com a projeção de que a população urbana da África deve dobrar até 2050. Hoje, quase quatro em cada cinco moradores urbanos acessam serviços essenciais a pé, mas 95% das vias não oferecem uma infraestrutura adequada para pedestres, e 93% não atendem ciclistas adequadamente.
Adis Abeba, capital da Etiópia, com cerca de 6 milhões de habitantes, é uma das cidades que busca mudar essa realidade, por meio de um ambicioso projeto de vários anos de desenvolvimento de corredores, guiado por um Plano Estrutural da Cidade, uma estratégia de segurança viária e uma estratégia de transporte não motorizado. A WRI África, em parceria com a Iniciativa Bloomberg de Segurança Viária Global, tem apoiado esse esforço com oficinas de capacitação, suporte técnico e documentos de orientação.
A primeira fase do projeto de desenvolvimento de corredores de Adis Abeba já foi concluída, com 40 km de vias completamente requalificadas. A segunda fase está em andamento. À medida que a cidade avança nesse esforço — enfrentando o desafio de manter o ritmo, mitigar os impactos dos deslocamentos e demolições necessários e atingir suas metas ambiciosas de longo prazo — já é possível extrair lições que podem orientar tanto esse projeto quanto os de outras cidades de países de baixa e média renda.
A maior parte das ruas de Adis Abeba não foi projetada para atender às necessidades da mobilidade ativa ou não motorizada. As calçadas são frequentemente estreitas e difíceis de transitar, devido à ocupação indevida do espaço por edificações adjacentes e à instalação indiscriminada de mobiliário urbano e barreiras verticais para criar acesso às propriedades privadas. Isso levou a reclamações frequentes de que a cidade foi construída apenas para donos de automóveis e para os jovens atléticos e aptos, deixando para trás as comunidades vulneráveis.
A primeira fase do projeto concentrou-se em cinco corredores de transporte existentes, com o objetivo de melhorar o visual, a segurança, a funcionalidade e a qualidade de vida urbana por meio da criação de ambientes vibrantes e amigáveis para pedestres. As intervenções incluíram o alargamento de calçadas, a implantação de ciclovias protegidas, a construção de estacionamentos fora da via e terminais de transporte público, além da criação de novos espaços verdes públicos. Em uma cidade onde 54% da divisão modal corresponde à caminhada e 86% das vítimas fatais em acidentes de trânsito são pedestres, essas ações são cruciais. A segunda fase, em andamento, segue um plano semelhante, com a meta de adicionar mais 132 km de corredores qualificados.
No entanto, como ocorre em outras cidades densas, o desenvolvimento desses corredores exige a demolição de edificações e residências existentes, deslocando milhares de pessoas e podendo ofuscar os esforços do projeto. Por exemplo, o corredor Piassa-México-Sarbet-Gotera-Wollo Sefer, com 10,4 km de extensão, precisou de um alargamento dos dois lados da via existente para acomodar a nova infraestrutura. Somente esse trecho causou a realocação de 3.250 domicílios e mais de 14 mil residentes, custando cerca de US$ 325 milhões para a cidade.
O projeto de desenvolvimento de corredores de Adis Abeba pode causar transtornos temporários, mas também promete uma solução de longo prazo para melhorar a acessibilidade e garantir viagens mais seguras e eficientes para a maioria dos residentes.
Leia mais: Adis Abeba: o que precisa mudar na capital da Etiópia
Em cidades como Adis Abeba, onde os moradores muitas vezes aguardam horas por transporte público ou caminham longas distâncias para evitar essas esperas, o uso da bicicleta pode ser uma alternativa viável. Mas para isso a infraestrutura deve ser disponível, segura e conveniente. Pesquisas com usuários das vias indicam que mais pessoas considerariam usar a bicicleta se existissem estruturas seguras para isso. Ciclovias protegidas e conectadas, melhor iluminação pública e mais segurança podem aumentar a demanda por deslocamentos a pé e de bicicleta. De fato, observa-se que a disponibilidade de infraestrutura cicloviária segura aumenta seu uso e sua demanda.
Com oficinas práticas e inspeções coletivas em campo, a WRI África ajudou autoridades e especialistas locais a avaliar como projetar infraestruturas mais seguras e inclusivas na cidade. A WRI também promoveu articulação com parceiros locais para reforçar o apoio político à ideia de ressignificar o uso das ruas — para além da circulação de veículos — e para estimular os “dias sem carro”.
Iniciada em 2019, a iniciativa “Menged Le Sew” (Rua do Povo), que promove dias sem carro em Adis Abeba, tem sido fundamental para aumentar a consciência sobre o papel das vias como espaços públicos entre usuários, técnicos e lideranças locais. Muito antes das obras começarem, a iniciativa ajudou as pessoas a visualizarem como a cidade poderia ser quando uma atenção maior fosse dada ao transporte não motorizado.
No início, apenas seis corredores de transporte eram fechados aos veículos motorizados um domingo por mês. Seis anos depois, 29 corredores são fechados em um domingo por mês e 12 são fechados todos os domingos. Além disso, a iniciativa dos dias sem carro agora já se espalhou pela maioria das capitais regionais da Etiópia. Especialistas da WRI África colaboraram com a Agência de Gestão de Trânsito de Adis Abeba para criar um guia de implementação de dias sem carro, que se tornou também uma plataforma de troca na qual autoridades de Adis Abeba e Acra (Gana) puderam compartilhar experiências com cidades da Índia, que têm um histórico de sucesso na implementação da sua própria iniciativa de dia sem carro: o Raahgiri Day.
A Estratégia de Transporte Não Motorizado da cidade enfatiza a importância de ciclovias segregadas e infraestrutura para pedestres, como faixas de pedestre e calçadas mais largas. Ela tem metas ambiciosas para os próximos 10 anos: construir 600 km de calçadas de alta qualidade e 200 km de ciclovias até o fim de 2028. A cidade também possui um Plano de Rede Cicloviária para 9 anos, que lista os corredores que mais se beneficiariam de novas e melhores ciclovias.
As lideranças locais agora estão focadas em lançar um sistema de bicicletas compartilhadas e em melhorar a integração das ciclovias com outros modais, estendendo as faixas existentes até as novas estações de transporte público e garantindo a presença de bicicletários nesses pontos.
As estratégias de mobilidade ativa e os dias sem carro de Adis Abeba não foram inventados ou executados da noite para o dia. Foram necessários anos de engajamento público, colaboração com líderes locais e, quando surgiu a oportunidade, implementação de soluções (como no caso da Bole Road). Agora, com o projeto de desenvolvimento de corredores ganhando forma no território, a capacidade da cidade de socializar seus planos e comunicar custos e benefícios será colocada à prova.
O atual projeto de desenvolvimento de corredores de transporte em Adis Abeba é o maior esforço já realizado para transformar a infraestrutura viária da cidade, e a forma como ele é conduzido terá efeitos que ecoarão por décadas. Para garantir que os investimentos desse esforço — e os de outras cidades com projetos similares — sejam maximizados, observamos cinco lições fundamentais até agora:
1) Integrar a infraestrutura de pedestres e de segurança viária existentes
Apesar das melhorias na infraestrutura para pedestres e ciclistas em alguns locais, como calçadas alargadas e ciclovias segregadas, a segurança nos cruzamentos continua sendo um desafio. Durante a implementação da primeira fase do projeto de desenvolvimento de corredores, a cidade removeu canteiros centrais e ilhas de refúgio de várias interseções, resultando em cruzamentos mais largos. Esses cruzamentos tornaram-se difíceis de administrar, mesmo com semáforos, e são inseguros para pedestres. Em certos pontos, os pedestres agora precisam atravessar mais de seis faixas de trânsito, aumentando o risco de acidentes e mortes.
Em vez de remover a infraestrutura para pedestres existente para acomodar os novos corredores, as cidades deveriam integrá-la aos novos projetos e garantir que os esforços para a segurança dos pedestres em outras partes da cidade não sejam comprometidos por uma má integração ou execução nas principais artérias e interseções. O desenvolvimento de corredores seguros e sustentáveis não deve apenas fornecer infraestrutura do ponto A ao ponto B, mas também garantir e gerenciar o acesso seguro para todos os usuários da via.
2) Incluir pequenos negócios
Como em muitas cidades, os pequenos negócios informais são a espinha dorsal da economia de Adis Abeba, gerando empregos e oferecendo serviços convenientes e acessíveis a muitos moradores. O esforço atual da cidade para excluir todos os vendedores ambulantes dos corredores de transporte não apenas exige grande investimento e fiscalização do poder público, como também reduz as chances de se criar um ambiente urbano mais vibrante e inclusivo.
É possível incluir os vendedores informais ao estabelecer padrões adequados, de forma que sua presença não comprometa a funcionalidade e a estética dos corredores em desenvolvimento. A oferta de produtos e serviços por esses negócios locais também tende a aumentar o fluxo de pedestres e ciclistas.
3) Expandir o transporte público e reconhecer seu papel nas viagens de longa distância
Destinar espaço exclusivo ao transporte público pode melhorar significativamente seu desempenho. Sistemas de BRT, VLT e metrô operam de forma mais eficiente e pontual quando possuem infraestrutura especializada e faixas exclusivas, que lhes garantem prioridade de passagem ou permitem evitar o congestionamento de automóveis. Algumas estações de transporte público já foram incorporadas aos projetos dos corredores, mas o impacto poderia ser ainda maior se esses sistemas fossem incluídos desde a concepção e o desenho dos projetos em toda a cidade. Por exemplo, o corredor Piassa-México-Sarbet-Gotera-Wollo Sefer foi planejado para receber uma linha de BRT, mesmo que a infraestrutura atualmente em construção ainda não incorpore os elementos desse modal.
Embora a nova infraestrutura para pedestres e ciclistas vá melhorar a qualidade e a acessibilidade de viagens curtas, as viagens mais longas só se tornam viáveis quando integradas ao transporte público. Mais do que incluir estações e terminais nos projetos, é fundamental conectar a infraestrutura desses outros modais aos sistemas de transporte coletivo para ampliar a acessibilidade.
Leia mais: A integração do transporte público na acessibilidade de Bogotá
4) Incluir vozes locais
Ao incluir moradores, especialistas e partes interessadas de diferentes áreas nas consultas públicas, os projetos de desenvolvimento de corredores de transporte vão se tornar mais adaptados aos contextos locais e mais inclusivos. O planejamento antecipado, o mapeamento adequado dos atores envolvidos, múltiplas rodadas de consulta e fóruns interdisciplinares são fundamentais para construir confiança com a comunidade e, eventualmente, gerar um sentimento de pertencimento e corresponsabilidade em relação ao sistema.
O engajamento de mais vozes na fase de concepção dos projetos também pode reduzir retrabalhos e evitar que oportunidades simples e valiosas sejam desperdiçadas.
5) Garantir operação e manutenção ao longo do tempo
Construir uma nova infraestrutura é um meio, não um fim. O pleno potencial dos investimentos em transporte público e infraestrutura para pedestres e ciclistas só será alcançado se as operações após o término das obras forem bem-sucedidas. Projetos têm datas definidas de início e fim, mas a qualidade operacional exige esforço contínuo ao longo de toda a vida útil da infraestrutura. Como os sistemas de compartilhamento serão implementados para oferecer mais bicicletas à população? Como lidar com vandalismo e desafios relacionados à segurança pública? Como gerenciar o comércio informal? Qual organização será responsável pelas operações de transporte? Essas e outras perguntas precisam de respostas claras para garantir a funcionalidade do sistema muito depois que o último tijolo for assentado.
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À medida que Adis Abeba continua expandindo seu projeto de desenvolvimento de corredores de transporte e que mais cidades em países de baixa e média renda consideram iniciativas semelhantes, é fundamental coletar dados, documentar e compartilhar os avanços, incorporando os aprendizados nas próximas fases de implementação. Essas cidades enfrentam desafios e contextos únicos, mas ainda assim há muito o que aprender umas com as outras.
Grandes projetos de transporte nem sempre são perfeitos, e trazem consigo uma série de desafios, mas adotar medidas ousadas para melhorar a qualidade de vida nas cidades, especialmente para os mais vulneráveis, é um passo na direção certa. Quando bem executados, com participação de profissionais interdisciplinares, envolvimento das partes interessadas e apropriação por parte da comunidade, os benefícios certamente compensam.
Artigo publicado originalmente em The City Fix, em maio de 2025.
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