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A bicicleta chegou a Joinville há cerca de 100 anos, no período entreguerras. Foi trazida primeiro na bagagem, por imigrantes, e logo foi importada em massa por empresas locais. Favorecida pela topografia plana, a bicicleta se tornou, em pouco tempo, a principal solução de mobilidade, sendo adotada pela maioria da população, conforme demonstram as contagens de tráfego desenvolvidas pela Serete Engenharia em 1972, para o desenvolvimento do Plano Diretor.
Dois ensaios publicados na primeira edição da revista “Joinville Universitária”, publicada pela Faculdade de Engenharia de Joinville também em 1972, destacam a importância da bicicleta na vida da cidade. Adolfo Bernardo Schneider, historiador, e Carlos Adauto Vieira, ensaísta, ambos sem formação em urbanismo, atribuíram à bicicleta a expansão territorial da cidade. Segundo eles, a adoção desse modal foi crucial para a transição de Joinville de uma colônia rural, onde as famílias viviam em pequenas fazendas, para uma configuração urbana, com lotes urbanizados e empregos na indústria. Também destacaram que a bicicleta estabeleceu novos parâmetros de distância, redefinindo “perto” como qualquer lugar acessível com facilidade de bicicleta.
Capa da primeira edição da revista Joinville Universitária. Foto: Marcel Virmond
A simplicidade e praticidade da bicicleta permitiram a redução gradativa do tamanho dos lotes, substituindo carroças e charretes e eliminando a necessidade de áreas de pasto e estábulos para animais de tração. Os autores identificaram ainda, na ampla utilização da bicicleta pela população, uma representação local do “Great American Dream”, simbolizando o anseio pela liberdade individual ao alcance de todos.
Os autores encerraram seus artigos com uma pergunta sobre o futuro: será que a bicicleta seria capaz de resistir ao avanço da motorização?
Cinquenta anos após essa publicação, podemos responder a essa indagação, pois a parte mais recente dessa história eu mesmo testemunhei, como observador participante.
Pioneirismo em infraestrutura cicloviária
A ampla utilização da bicicleta pela população de Joinville levou à adoção de soluções urbanísticas pioneiras no país. A cidade foi uma das primeiras no Brasil a implantar ciclovias segregadas e, em 1979, construiu a primeira ponte com ciclovia do país, a Ponte do Trabalhador. Com sua ampla ciclovia, ela conectava a região popularmente conhecida como “bairrão” à Fundição Tupy, a maior unidade fabril da cidade à época.
Ponte do Trabalhador, em Joinville. Foto: Biblioteca IBGE
A troca de turno da Tupy era um espetáculo à parte, com milhares de operários de macacão azul saindo simultaneamente, pedalando suas bicicletas “raiz”.
Trabalhadores saindo da fábrica de bicicleta. Foto: Arquivo Histórico de Joinville
A versatilidade da bicicleta em Joinville
Com faróis a dínamo, motores auxiliares a combustão ou bateria, capas de chuva, alforjes e bagageiros de todos os tipos, os habilidosos artífices de Joinville adaptaram suas bicicletas às condições meteorológicas e aos mais diversos usos. Carinhosamente chamada de “zica”, a bicicleta era o equivalente, na época, ao que hoje seria um “Uno com escada no teto”. Levava as crianças à escola, a mulher ao comércio, a família toda ao passeio de domingo.
A bicicleta permitia até pequenas viagens, seja para visitar parentes em fazendas distantes ou para banhos de rio junto às pontes cobertas. Servia para carregar lenha e também para transportar botijões de gás. Era o brinquedo favorito das crianças e, empinada por longas distâncias, atendia às necessidades adolescentes de autoafirmação diante dos amigos e namoradas. Sim, era possível namorar de bicicleta, levando a pessoa querida no guidão, na garupa, ou melhor ainda, no canote, entre o banco e o guidão, bem abraçada.
Avenida Getúlio Vargas, em Joinville, em 1950. Foto: Domínio Público
Desafios e declínio
No entanto, a bicicleta enfrentou ataques e ameaças constantes. O automóvel, ganancioso, ocupou cada cantinho das ruas, seja para circular, seja para estacionar. Nessa disputa, os atropelamentos de ciclistas tornaram-se frequentes. Além disso, a introdução do vale-transporte, no final dos anos 1980, retirou do trabalhador a vantagem econômica de se deslocar de bicicleta para o emprego, promovendo o uso do transporte coletivo e dos fretamentos.
A cidade continuou a crescer e a se expandir, aumentando as distâncias a serem percorridas. A implantação do novo distrito industrial na zona norte, no final dos anos 1970, levou as grandes indústrias para longe do “bairrão”, dificultando o acesso dos ciclistas. A chegada da televisão e de novos padrões de consumo também contribuiu para o preconceito contra a bicicleta e seus usuários, vista como o veículo do pobre e do operário.
Com isso, a bicicleta foi perdendo gradualmente seu protagonismo em Joinville. Restaram-lhe apenas suas qualidades intrínsecas: prática, barata e econômica, continuava a oferecer a liberdade individual de deslocamento.
Renascimento e expansão
Felizmente, a história não parou por aí. A partir dos anos 1990, com o surgimento da consciência ambiental, o crescimento dos movimentos sociais e o amadurecimento da sociedade brasileira, a bicicleta passou a ser vista com novos olhos. Especialistas em questões urbanas reconheceram-na como uma solução eficaz para os problemas de mobilidade, promovendo-a como um modal a ser integrado aos sistemas de transporte urbanos, por ser ambientalmente correto e socialmente justo. Paralelamente, a bicicleta ganhou destaque como ferramenta para melhorar a saúde e a qualidade de vida, sendo adotada pela “geração saúde” tanto como veículo esportivo quanto como opção de lazer.
Funcionários da Tupy saindo do local de bicicleta em 2014. Foto: WRI Brasil
No planejamento urbano de Joinville, iniciou-se uma verdadeira guerrilha em prol da bicicleta. Urbanistas do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano (atual Secretaria de Pesquisa e Planejamento Urbano) passaram a desenhar ciclovias em todos os novos projetos viários e a substituir vagas de estacionamento por ciclofaixas nas requalificações de vias. Embora nem todos os projetos tenham sido implantados conforme o planejado, enfrentando resistências internas e da comunidade, cerca de 370 km de ciclovias, ciclofaixas e ciclorrotas foram construídos a partir de 1997.
Hoje, Joinville conta com mais de 60 km de ciclovias por cada 100 mil habitantes, posicionando-se entre as maiores redes cicloviárias do hemisfério sul, conforme atestado pela plataforma Bright Cities.
Ciclista em Joinville. Foto: WRI BrasilCiclistas em Joinville. Foto: WRI Brasil
Projetos como os Passeios Públicos, que urbanizam regiões precárias da cidade enfatizando os modais ativos de deslocamento, têm recebido prêmios de urbanismo e de cidades inteligentes. As preocupações globais com as mudanças climáticas e a necessidade de se reduzir as emissões de carbono consagraram a bicicleta como o modal de mobilidade a ser mais incentivado. Joinville, mesmo enfrentando os desafios do rodoviarismo, conseguiu preservar o uso da bicicleta como um meio de transporte muito popular, com cerca de 12% de todos os deslocamentos diários, continuando assim a fazer jus ao seu título de “Cidade das Bicicletas”.
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