O adensamento urbano em Porto Alegre e a polêmica de um novo empreendimento
Apesar da repercussão negativa, é preciso entender como o empreendimento recém aprovado em Porto Alegre pode beneficiar a cidade.
Após uma história conturbada, o bairro Rodrigo Bueno, em Buenos Aires, teve resultados transformadores com uma estratégia que inclui a colaboração e a tomada de decisões em conjunto com os moradores.
9 de setembro de 2024No extremo leste de Buenos Aires, os moradores do bairro Rodrigo Bueno fazem uma pausa no jogo de futebol e se esticam nos gramados. Mais adiante, uma cozinha fervilha com moradores testando receitas para apresentar no refeitório do bairro. Novos blocos habitacionais, com aquecimento solar, se juntam a casas mais antigas e delimitam o espaço compartilhado. Mas as pessoas que moram em Rodrigo Bueno nem sempre tiveram esse ritmo de vida suave.
O bairro surgiu no início da década de 1980 como uma favela de casas construídas pelos próprios moradores em terrenos precários. O bairro não tinha acesso a serviços básicos como água potável, saneamento ou eletricidade, nem contava com escolas, unidades de saúde e outras instituições governamentais. Como costuma acontecer com assentamentos informais, Rodrigo Bueno era uma área mais exposta e vulnerável aos riscos climáticos devido à alta densidade, falta de ventilação e, nesse caso, ainda à proximidade de um canal propenso a inundações.
Por mais de dez anos, Buenos Aires tentou expulsar os moradores da região e remover suas casas. A população, porém, encontrou formas de atrasar e impedir o despejo, demonstrando um elevado grau de auto-organização comunitária. Ainda assim, as mudanças climáticas, cada vez mais intensas, causaram inundações no bairro, e as casas construídas de forma precária corriam o risco de desabar no canal.
Em 2016, o cenário mudou: uma nova administração municipal abandonou as batalhas legais pela desapropriação dos moradores e adotou uma nova estratégia para enfrentar os desafios de Rodrigo Bueno, incluindo a colaboração e a tomada de decisões em conjunto com os moradores. Os resultados foram transformadores.
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O projeto de qualificação do bairro Rodrigo Bueno partiu de uma abordagem integrada que substituiu a imposição de mudanças por parte do governo por um processo inclusivo, concentrado na integração habitacional, conectividade urbana e oportunidades socioeconômicas.
As mudanças no bairro são resultado do trabalho do Instituto de Habitação de Buenos Aires, que formou uma “Equipe Territorial” composta por assistentes sociais, antropólogos e arquitetos para trabalhar no projeto. O time passou uma temporada em Rodrigo Bueno, reunindo-se diariamente com os moradores. Assim, a equipe conheceu de perto os moradores e suas histórias: comemorações de aniversários ou de novos empregos, relatos das lutas dos imigrantes que estão dando início a uma nova vida na cidade ou das crianças com dificuldade de ir à escola. Esse envolvimento com a comunidade, ao longo de oito anos, foi um processo lento, consistente e contínuo que formou um sentimento forte de confiança, permitindo que os moradores e o Instituto construíssem em conjunto as soluções e políticas para o bairro conforme suas próprias necessidades.
Uma das primeiras mudanças aconteceu em 2017, quando a Equipe Territorial desempenhou um papel fundamental na formulação e aprovação de uma nova lei que reconheceu formalmente a propriedade de terras e casas dos moradores de Rodrigo Bueno. Historicamente, os residentes de moradias informais não são legalmente proprietários dos terrenos onde construíram suas casas – o que, além do medo constante de despejo, os impede de acessar uma série de serviços municipais e oportunidades de emprego.
Muitas vezes, os vizinhos vigiavam as casas uns dos outros. A precariedade dessa situação pode ter consequências econômicas e sociais graves a longo prazo. “Inicialmente, era preciso entrar e sair escondido [para trabalhar]”, conta Pedro Antonio Candia, morador de 19 anos. “Alguém tinha que ficar em casa, senão poderiam invadir. Nós nos revezávamos ou um vizinho vigiava a casa”, acrescenta.
Depois da nova lei, tiveram início diversas mudanças físicas no bairro. Novas vias foram construídas. Os moradores receberam endereços residenciais oficiais, possibilitando-os de receber correspondências e se cadastras nos serviços públicos. As empresas locais passaram a aparecer nos mapas. Os serviços de emergência passaram a poder chegar até os moradores.
Na nova rede viária, foram construídas e oferecidas aos habitantes 611 novas unidades habitacionais em prédios com eficiência energética e sistemas de aquecimento de água alimentados por energia solar. O valor da hipoteca para as novas casas foi determinado pela renda, e o valor das casas mais antigas, construídas pelos próprios moradores, foi descontado do custo total da nova habitação.
Os moradores tiveram a opção de permanecer em suas casas nos casos em que não corriam risco imediato de colapso. As habitações já existentes receberam melhorias estruturais, estéticas e de infraestrutura. A liberdade de escolha entre mudar ou permanecer garantiu que os moradores pudessem manter sua autonomia durante todo o processo de qualificação do bairro. Aqueles cujas casas ficavam muito perto da beira do canal tiveram ainda a opção de trocar a residência pela de moradores que optaram por se mudar para um dos prédios novos.
A resiliência e a proteção ambiental também foram elementos fundamentais para a qualificação de Rodrigo Bueno. Em 2022, o Instituto de Habitação deu início às obras de recuperação do canal, que forma uma das divisas do bairro.
Até o momento, foi feita a limpeza do canal, um sistema de controle de águas pluviais foi instalado, e um muro de contenção foi construído para reduzir as inundações. Quando todo o projeto estiver concluído, uma “borda costeira” contará com uma área de passeio, oferecendo mais espaço público aos moradores.
O Instituto de Habitação também conduziu diversas oficinas e treinamentos com os moradores, incluindo um curso de três meses sobre jardinagem e agricultura, que teve como resultado a criação do viveiro La Vivera Organica, em 2019. Criado por 14 moradoras, o viveiro cultiva espécies nativas encontradas na reserva Costanera Sur, próxima ao bairro, e serve como fonte de produtos frescos produzidos localmente.
Durante o lockdown da pandemia de Covid-19, o viveiro forneceu alimentos frescos à comunidade e doou produtos aos mais vulneráveis. O negócio também ajudou o bairro a estabelecer relações com o restante da cidade. Em 2021, para atender tanto aos moradores de Rodrigo Bueno quanto aos visitantes da reserva ecológica, foi inaugurado um pátio gastronômico na área, e o hotel Hilton Buenos Aires se comprometeu a adquirir 100% de seus produtos orgânicos do viveiro La Vivera.
Elizabeth Cuenca, moradora de Rodrigo Bueno e gerente comercial do viveiro, acredita que a nova relação entre a prefeitura e os moradores foi fundamental para o sucesso do projeto habitacional. “Com a participação da comunidade como prioridade, os resultados foram melhores”, diz. “O Instituto [de Habitação] sabe o que as pessoas precisam, mas nós também sabíamos exatamente do que precisávamos aqui”, afirma.
A abordagem gradual, participativa e abrangente utilizada pelo Instituto de Habitação na qualificação de Rodrigo Bueno é um exemplo para muitas cidades ao redor do mundo. Estima-se que existam, globalmente, 1,2 bilhão pessoas vivendo sem acesso à habitação segura e acessível nas cidades.
Aliar intervenções sociais, econômicas e habitacionais é uma estratégia que o Instituto de Habitação tem utilizado também em outros assentamentos informais de Buenos Aires, beneficiando mais de 70 mil habitantes. Cada bairro tem suas próprias nuances e prioridades, como escolas, centros de saúde ou espaços verdes.
No caso de Rodrigo Bueno, os resultados foram além dos benefícios materiais. Blanca Brizuela Duarte, moradora do bairro desde 1998 e proprietária de uma banca no pátio gastronômico local, orgulha-se de compartilhar pratos tradicionais do Paraguai. “Isso fazia parte do projeto, uma vez que nós somos cozinheiras que lutamos para manter vivas as receitas antigas das nossas avós”, conta ela. “Tenho clientes do bairro e de vários outros lugares – do centro da cidade, de San Telmo, de La Boca – que vêm experimentar nossos pratos e saem felizes. É esse o objetivo dessa praça de alimentação: é sobre amor, sobre o amor pelo que temos”, finaliza.
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Artigo originalmente publicado em WRI Brasil, em agosto de 2024.
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