Em louvor ao pequeno gesto

27 de outubro de 2023

A grandiosidade está nos detalhes.

Em 2011, esteve na FAUUnB um professor estrangeiro, que foi anunciado como uma pessoa importante. Anunciaram, também, que ele estaria disponível para opinar nos projetos de diplomação dos estudantes que se inscrevessem para ter sessões com ele e outros convidados. Seriam orientações individuais, embora curtas. Minha orientanda na época me perguntou o que eu achava, e eu disse que não custava nada ouvir uma crítica, uma inspiração de alguém que tenha um olhar de fora.

Ela, na época, estava fazendo um projeto para o Taguacenter, um dos poucos locais fora do Plano Piloto que atrai diariamente gente de todo o DF, com intenso comércio de rua que se transformou numa espécie de polo de artigos para festas, armarinhos, lojas de tecidos, decoração, papelarias e usos complementares.

Os preços são bons, há muita variedade, mas lá é um furdunço. Uma confusão de carros e pessoas, calçadas estreitas, obstruídas, desniveladas, descontínuas, uma praça que não favorece a permanência, um parquinho infantil falido, falta total de acessibilidade, situação precária para os usuários de transporte público, trechos inseguros com paredes cegas, conexão ruim com o que ocorre em volta, entre outros problemas que… ainda estão lá.

A estudante queria trazer qualidade, conforto e beleza para o espaço público, não só para favorecer quem já usa o local, mas também para transformá-lo num destino para quem só quisesse passear. Reestruturou vias, pensou nas travessias e na rede de calçadas, conectou a área com seu entorno, criou trajetos acessíveis, organizou os estacionamentos, locais de carga e descarga, deu caráter às partes do todo, propôs mais arborização e áreas de permanência, tudo isso mantendo a identidade local. Isso, claro, exigiu dela leitura, horas gastas no lugar, de dia e à noite, conversas com pessoas, contagem, levantamento de atividades estacionárias para elaboração de mapas comportamentais, fotografias, diagnóstico detalhado e muita busca de repertório.

Então, com uma proposta já avançada, infelizmente apresentada em apenas 10 minutos, ela recebeu o seguinte comentário: o projeto era “humilde, mas talvez pobre”. O professor disse que entendia que ela queria tratar os espaços urbanos e arrematou dizendo que, afinal, “alguém tinha que desenhar esses espaços também”. Ela saiu da sessão, entre frustrada e indignada, e me contou tudo, detalhadamente, num e-mail (por isso, as aspas).

É importante que se diga que trabalhos dessa natureza, com intervenção em área consolidada, exigem um pouco mais de 10 minutos para serem compreendidos, pois trazem muitos detalhes. É importante também que se diga que o professor não conhecia o local, e isso poderia dificultar a compreensão da proposta, se ela não estivesse muitíssimo bem representada, o que pode ter ocorrido. E, por último, é importante que se diga que o projeto da estudante poderia não estar realmente bom. Mas, como tento ser honesta e imparcial com o produto de meus orientandos, preciso dizer que sim, era um bom projeto.

Ocorre que o comentário feito não falava da falta de tempo para compreender a proposta; ou da dificuldade em verificar sua eficácia, por não se conhecer o local; ou do fato de o projeto ser ruim. O comentário era sobre a própria natureza do projeto: “Alguém tinha que desenhar esses espaços também”.

Como assim, “alguém”? Alguém, tipo… a pessoa que sobrou? A que não soube pensar em nada melhor, mais impactante, para fazer na sua diplomação, ou no exercício da sua profissão? A que quis abdicar da possibilidade de produzir seu grande gesto?

Então, o arquiteto que desenha a cidade na escala mais fundamental, a do pedestre, está fazendo algo humilde, pobre? À época do levantamento, foram contabilizadas 40 mil pessoas em 4 pontos de contagem, das 9h às 18h, num sábado. Como é possível não ser considerada grandiosa uma boa e bela solução que favoreça tanta gente?

Isso é real. Essa história é apenas um exemplo do muito que já ouvi, desmerecendo ou diminuindo a importância do desenho urbano ou do levantamento de campo. Às vezes, é ignorância do alcance e do trabalho que dá uma “mera” reestruturação viária, por exemplo. Às vezes, é só uma visão limitada, mesmo (mas empáfia não está descartada).

Felizmente, isso está mudando. Precisamos valorizar quem desenha o cotidiano, quem se dá ao trabalho de andar pelas cidades e observar as falhas que ela apresenta para a experiência diária de todos nós, estudar e propor soluções no nível do solo, no nível dos olhos. A grandiosidade vem dessa generosidade e gentileza.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Arquiteta, professora da área de urbanismo da FAU/UnB. Adora levantamento de campo, espaços públicos e ver gente na rua. Mora em Brasília. (ceep.unb@gmail.com)
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