Como Copenhagen se tornou a joia do urbanismo mundial | Parte 2
Foto: Anthony Ling

Como Copenhagen se tornou a joia do urbanismo mundial | Parte 2

Copenhagen se tornou uma referência mundial ao abraçar um conjunto de princípios e estratégias para sair de uma crise. Essas soluções podem inspirar outras cidades pelo mundo.

28 de julho de 2025

No artigo anterior desta série, vimos que Copenhagen nem sempre foi uma “joia” do urbanismo mundial. No pós-guerra, a cidade viu a ascensão de um modelo funcionalista e rodoviarista de urbanismo que acabou fracassando. Após uma grande crise de fuga de capital e abandono de áreas centrais, a virada de chave começou nos anos 1990.

As estratégias para revitalizar Copenhagen vieram da integração de diferentes frentes de atuação, norteadas por princípios que foram fundamentais para o sucesso e a continuidade do processo. Essas estratégias e princípios também podem inspirar cidades brasileiras a criarem novas ferramentas para a impulsionar o desenvolvimento de seus centros urbanos.

Destravando valor das áreas públicas

O ponto de partida da solução de Copenhagen foi uma reavaliação estratégica de seus próprios ativos, iniciando por Ørestad, uma região atípica que se tornava disponível para expansão. Ørestad se localiza na Ilha de Amager, em uma antiga e enorme área de aterro que tinha sido construída para gerar atividade econômica durante a Segunda Guerra Mundial e que poderia servir como área de treinamento militar e de expansão de pasto rural. O local ficou sob domínio do exército durante décadas e foi gradualmente sendo desocupado e liberado para outros usos, processo que só se completou em 2010. Hoje, a maior parte do aterro se tornou uma área de preservação natural, embora tenha sido resultado de uma obra humana.

Mapa de Copenhagen com a área do aterro na Ilha de Amager. Imagem: Google Earth, com edições

Nos anos 1990, Jens Kramer Mikkelsen criou a Empresa de Desenvolvimento de Ørestad, uma parceria entre governo e município em que este atuou com a revisão do zoneamento da área, passando a permitir usos comerciais, educacionais e residenciais. O objetivo da Empresa era financiar a construção das primeiras linhas do metrô de Copenhagen por meio do aumento do valor imobiliário dos terrenos de Ørestad.

Vista aérea de Ørestad. Foto: Wikimedia Commons

Em seguida, os olhos se voltaram também para a região portuária da cidade, que estava em declínio. O porto já operava com déficits operacionais, resultado de uma gestão ineficiente, e após a inauguração da ponte que liga Copenhagen a Malmo, na Suécia, perderia ainda mais fontes de receita. Assim, no início dos anos 2000, a administração do Porto de Copenhagen iniciou um processo de locação da sua área para uma nova operadora e de venda de terras ociosas. Essa reestruturação gerou lucros importantes para a cidade.

Em 2007, ocorreu a fusão da companhia do Porto de Copenhagen com a Empresa de Desenvolvimento de Ørestad – presidida pelo ex-prefeito Mikkelsen –, formando a Empresa de Desenvolvimento Cidade & Porto. Seu principal objetivo era usar as receitas do redesenvolvimento urbano para financiar a expansão da infraestrutura e outras melhorias na cidade.

Embora seja uma empresa pública, por ter um mandato claro e uma participação mista entre governo municipal e federal, ela permite a execução de propostas de Estado, e não de governo, associadas a um mandato específico. Além disso, ela pode determinar, por exemplo, cotas mínimas de habitação social nos empreendimentos, equilibrando interesses de incorporadoras privadas e das entidades públicas responsáveis.

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Gerando um ciclo sustentável de financiamento

A identificação das áreas ociosas também representa uma visão importante para o planejamento urbano: a de considerar os custos de oportunidade. Isso significa levar em conta não apenas aquilo que se perde, mas aquilo que se deixa de ganhar com determinada decisão. Quando imóveis públicos estão abandonados ou subutilizados, é comum pensar que o malefício é “apenas” a degradação. Mas a gestão de Copenhagen entendeu que também havia nessas áreas um valor imobiliário desperdiçado que poderia trazer muitos benefícios para a cidade.

A geração de valor e o investimento em infraestrutura produziram um grande ciclo virtuoso em Copenhagen. Com agilidade institucional, gestão estratégica e mudanças de zoneamento, os terrenos públicos são valorizados. O valor capturado é investido em infraestrutura, mobilidade e amenidades nos espaços públicos. Isso, por sua vez, aumenta ainda mais a atratividade da cidade e o valor dos terrenos, e o ciclo se repete.

Outra característica atípica da rede de metrô de Copenhagen é que ela opera sem subsídios, sendo uma empresa pública rentável. A Metroselskabet, responsável pelo metrô, precisa, por lei, conceder as operações a um grupo privado. A operação é uma das únicas que não dependem de subsídios em toda a Europa, e tem a obrigatoriedade de repagar as suas dívidas de longo prazo por conta própria.

Investindo em espaços públicos saudáveis

Ao viabilizar o financiamento dos projetos de requalificação da cidade, a prioridade de Copenhagen não foi alargar pistas ou construir viadutos, mas melhorar o transporte coletivo. O metrô acabou se tornando um elemento fundamental na cidade e ajudou a conectar diversos bairros, otimizando deslocamentos. A partir da melhora do transporte coletivo e dos espaços públicos voltados para as pessoas, Copenhagen se tornou uma referência de caminhabilidade.

O investimento massivo em infraestrutura cicloviária também foi um marco para a cidade. Morten Kabell, ex-secretário de assuntos ambientais em Copenhagen, relata que, em meio ao colapso financeiro, a cidade decidiu investir na infraestrutura e no meio de transporte mais barato: a bicicleta. Em 2002, foi criada a primeira Política de Ciclismo, com objetivo de, em uma década, aumentar o percentual de viagens de bicicleta ao trabalho de 32% para 40%. O resultado hoje é visível: a cidade superou a meta, atingindo 45% em 2014, e hoje se vê milhares de ciclistas nas ruas. O sucesso da cidade não foi apenas na viabilização dos financiamentos, mas no direcionamento estratégico dos investimentos.

Ciclistas em Copenhagen. Foto: Anthony Ling

Em 2010, Copenhagen já começou a despontar globalmente como um exemplo de regeneração urbana, com design e qualidade de espaços. Jan Gehl, já considerado um renomado estudioso do espaço urbano, publicou no mesmo ano “Cidades Para Pessoas”, livro com estrondoso sucesso global e que começa a influenciar cidades do mundo inteiro. 

Quando estive em Copenhagen pela primeira vez, em 2007, a área ao longo do rio começava a se transformar, mas ainda era dormente: os principais atrativos eram a extensão da Biblioteca Real, de 1999, a Ópera do Teatro Real, de 2004, e a Ópera de Copenhagen, que tinha acabado de ser construída. Em 2010, o edifício de escritórios Krystallen foi inaugurado como um investimento privado, entendendo o desenvolvimento da área. Em 2012, o espaço público da rua Havnegade, junto ao canal, foi redesenhado. As pontes exclusivas para pedestres e ciclistas que cruzam o canal foram inauguradas entre 2015 e 2019. O Centro de Arquitetura Dinamarquesa, em 2018. O Operaparken, junto à Ópera de Copenhagen, em 2023. Em 2015, foi realizado um concurso arquitetônico para redesenvolver Papirøen, a antiga “Ilha do Papel”, com inauguração da primeira fase em 2024. O processo de revitalização se tornou impossível de ignorar.

Papirøen à direita do canal. Foto: Anthony Ling

Bjarke Ingels e a reinvenção do urbanismo dinamarquês

Paralelo à revolução no urbanismo de Copenhagen, surge em 2005 um jovem escritório chamado BIG (Bjarke Ingels Group), cujo líder, com apenas 30 anos, transformaria uma nova geração de arquitetos urbanistas na Dinamarca. Em meados dos anos 2000, Bjarke Ingels começa a aparecer nos holofotes globais da arquitetura com conceitos arquitetônicos que desafiavam o status quo e praticando uma abordagem hedonista sintetizada no livro “Yes is More”, publicado em 2009. 

Começando pelos seus projetos “8 House” e “VM Houses” em Ørestad, Bjarke mostrava que era possível criar uma nova linguagem arquitetônica que rompia com os padrões mais rígidos da arquitetura modernista escandinava, com conceitos audaciosos e, ao mesmo tempo, divertidos. Ao projetar a usina de Copenhill, o BIG propôs que o edifício, em forma de rampa, criasse uma pista de ski aberta ao público, de forma a atrair a população e mostrar que o processamento do lixo seria totalmente limpo. Superkilen, uma grande intervenção em espaço público em Nørrebro, um dos bairros mais etnicamente diversos de Copenhagen, busca trazer referências culturais de toda a sua população de forma colorida e divertida. Mais recentemente, o BIG continuou impactando o urbanismo da cidade vencendo um concurso para redesenhar espaços públicos em Ørestad.

8 House, em Ørestad. Foto: Wikimedia Commons

Críticas ao modelo de Copenhagen

Por outro lado, não faltam críticos para o modelo de urbanização em curso. Colville-Andersen se junta ao coro de urbanistas que criticam a rigidez e a falta de vida urbana de Ørestad, que acabou se tornando mais um subúrbio, ainda orientado ao automóvel, principalmente quando comparado com a cidade histórica de Copenhagen. 

Copenhagen também está “dobrando a aposta” no bairro de Nordhavn, com a proposta de gerar expansão urbana através de áreas de aterro, criando novas “tabulas rasas” para experimentação urbanística e arquitetônica. Apesar de Nordhavn já ser uma das maiores obras da Europa Ocidental, com 200 ha de área de urbanização (sendo 100 ha de aterro), Copenhagen avança com a ideia de Lynetteholm, um megaprojeto de 275 ha totalmente em aterro. Uma série de grupos ambientalistas criticam o projeto, que teria o potencial de alterar as correntes marítimas para o Báltico, mudando a sua composição. Teria o espírito de experimentação arquitetônica, impulsionado por Bjarke Ingels, ido longe demais?

O alto custo da joia do urbanismo

Em 2013, em plena ascensão do urbanismo de Copenhagen, escrevi um artigo intitulado “Copenhagen e o urbanismo de luxo na excludente Dinamarca”. Mais de uma década depois, ele continua atual. No final dos anos 1950, apenas uma década após a concepção do Plano dos Dedos, Copenhagen já percebia que o Plano não daria conta do crescimento populacional que a região metropolitana viu no pós-guerra, motivado pela descentralização. Naquela época, já se discutia a urbanização de novas áreas em Amager, que só foram se concretizar décadas depois.

Um fato inexorável da história das cidades é que, à medida que recebem mais pessoas e que seus habitantes se enriquecem, ela requer mais espaço construído. Copenhagen sempre foi parcimoniosa com seu desenvolvimento urbano, seguindo o Plano dos Dedos com seriedade ao longo de décadas, assim como mantendo a morfologia urbana do centro histórico consolidado da cidade.

Leia mais: Por que Nova York está em uma “emergência habitacional” há 80 anos?

Isso incentivou que praticamente todas as recentes expansões urbanas de Copenhagen fossem em áreas de aterro. Ørestad no aterro de Amager, a expansão da antiga área portuária que cruza a cidade, o desenvolvimento de novas penínsulas como Nordhaven e, mais recentemente, Holmen e o megaprojeto de Lynetteholm.

A partir do desenvolvimento da cidade nas últimas décadas, Copenhagen conseguiu reverter o cenário de crescimento populacional e, em pouco mais de 20 anos, aumentar a sua população em 40%, para 660 mil pessoas. Enquanto isso, o preço da moradia dobrou nos últimos 10 anos. O metódico planejamento do crescimento da cidade tem tido resultados extraordinários em termos de qualidade urbanística, mas também gera uma das cidades mais caras do mundo para se morar. Copenhagen é verdadeiramente uma joia urbanística – um ativo não só de altíssima qualidade, mas também escasso. 

Segundo a mesma EIU que ranqueou Copenhagen como a melhor cidade do mundo para se morar, em 2023 Copenhagen foi considerada a oitava cidade mais cara do mundo para se morar, empatada com Tel Aviv. Ao mesmo tempo, a Dinamarca tem se destacado, na Europa, como um país de política migratória mais restritiva, evitando sempre que possível a entrada de novos imigrantes, tema de outra matéria da The Economist. Imigrantes são frequentemente deportados e, desde o final da década de 2010, está em vigor uma lei para acabar com os chamados “guetos” de imigrantes de baixa renda, reduzindo o número de unidades subsidiadas e, em última instância, demolindo os edifícios em más condições.

Lições principais

Pensando na realidade das cidades brasileiras e das muitas áreas em tentativa de revitalização, algumas lições desse exemplo se destacam:

  • • É preciso começar olhando para as oportunidades de arrecadação que estão sendo desperdiçadas nos ativos públicos subutilizados;
  • • O foco da gestão urbana deve estar nos espaços públicos, e não no lote privado;
  • • Flexibilizações no zoneamento podem impulsionar o desenvolvimento de áreas ociosas e permitir o financiamento de infraestruturas importantes;
  • • Para construir cidades mais vibrantes e com qualidade de vida, deve-se investir no transporte coletivo e na mobilidade ativa;
  • • O ciclo de financiamento do desenvolvimento urbano deve ser sustentável;
  • • A integração e a colaboração entre diferentes atores e partes do governo é fundamental para a operacionalização do processo;
  • • É preciso avaliar quem está sendo beneficiado com as políticas urbanas e quais são as suas externalidades invisíveis.

Muitas ideias desse modelo podem servir como inspiração para transformações positivas em outros territórios, mas a capital dinamarquesa enfrenta sérios desafios. O custo de vida em Copenhagen, hoje, é vítima do seu próprio sucesso. É um problema que se repete de forma parecida em outras cidades grandes e altamente atrativas, como Paris, Barcelona e Nova York. A busca pela qualidade urbanística jamais deve ser deixada de lado, mas esses exemplos mostram a importância de uma política que integre esses esforços à acessibilidade habitacional.

Para entender mais sobre como esses casos podem inspirar soluções importantes para os problemas das cidades brasileiras, conheça o curso “Do Planejamento ao Caos“.

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