Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
Nova York em 1900. Foto: Domínio Público

Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis

As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.

24 de outubro de 2024
Foto: Domínio Público

Confira a foto histórica acima, de 1898. Você consegue dizer onde é? Prometo que é um lugar que você já ouviu falar. 

Muito difícil? Aqui está o mesmo local 13 anos depois:

Foto: Domínio Público

E aqui está 33 anos depois disso:

Foto: Rob Ketcherside/Flickr

E aqui está em 2016:

Foto: Ted McGrath/Flickr

Sim, é a Times Square, em Manhattan (Nova York).

Você ficou surpreso com as mudanças? Não só esse local agora famoso foi transformado múltiplas vezes, como é quase impossível imaginar um mundo onde isso não teria acontecido. Nova York viveu muitas vidas. Quando o Central Park começou a ser construído, em 1857, a terra ao redor ainda tinha vilarejos semi-rurais. Em 1898, quando a primeira foto foi tirada, o elevador elétrico era uma invenção recente, a água encanada havia acabado de chegar a toda a cidade e os automóveis ainda estavam a anos de aparecer nas ruas em números significativos.

E assim como as mudanças tecnológicas transformaram a cidade, as mudanças demográficas e econômicas também o fizeram. O declínio da indústria (acredite ou não, houve um tempo em que o Meatpacking District, “distrito de processamento de carnes”, era realmente o que o nome sugere), a ascensão do turismo global, mudanças dramáticas no tamanho das famílias e nos arranjos de moradia. Tudo isso e mais contribuíram para a contínua reinvenção e mudança de propósito da cidade viva.

Todas essas mudanças parecem naturais e óbvias quando aplicadas a um lugar como Nova York. À medida que o mundo muda intensamente, é claro que uma cidade que é um microcosmo do mundo todo também vai mudar.

No entanto, isso não é um fenômeno exclusivo de Nova York ou Manhattan. O processo que vemos aqui é diferente em escala, mas não fundamentalmente em natureza daquele que observamos em cidades e vilarejos muito menores. Em uma série de fotos que usamos diversas vezes no Strong Towns, você pode ver a evolução de Brainerd, Minnesota, de 1870 para aproximadamente 1900 e depois 1930:

Brainerd, Minnesota. Fotos: Domínio Público

Uma criança nascida na primeira cidade mostrada acima poderia muito bem ter criado seus próprios filhos na segunda e levado os netos para tomar sorvete na terceira.

Se você morasse em praticamente qualquer cidade americana, grande ou pequena, no início do século 20, a mudança era uma constante. Provavelmente, nem lhe passaria pela cabeça que o lugar onde você morou permaneceria essencialmente o mesmo à medida que as décadas passassem. As forças que atuavam sobre esse lugar eram profundas demais.

Cincinnati em 1841. Imagem: Wikimedia Commons

As cidades aspiravam ao crescimento como uma questão de orgulho cívico. E à medida que cresciam para os lados, também cresciam para cima: enquanto novos bairros surgiam na periferia, o núcleo da cidade também se tornava mais alto e denso. Nenhum lugar era imutável.

Do ponto de vista econômico, é assim que esse processo se dá. Cada bairro está constantemente ganhando em produtividade e intensidade de desenvolvimento, não apenas os recém-construídos:

Gráfico do valor (vertical) pela distância do centro da cidade (horizontal). Imagem: Strong Towns, com tradução própria

Isso não significa que nada permanece o mesmo. Muitos edifícios perduram. As cidades de fato estabelecem padrões permanentes sobre os quais elas crescem, como grelhas viárias e praças públicas. Muitas fizeram previsões visionárias para pontos centrais, como grandes parques públicos. Porém, dentro desses padrões, a mudança é a norma.

A constância da mudança também não é apenas uma questão de crescimento populacional. A ilha de Manhattan tinha mais residentes em 1900 do que tem hoje. A população atingiu o pico em 1910, com 2,3 milhões, e passou por altos e baixos desde então, mas ninguém sugeriria que a transformação dos bairros parou ou até mesmo desacelerou muito após 1910.

A ideologia da “permanência”

Por outro lado, se você nasceu na metade do século 20 e agora está na velhice, você viu o mundo mudar de forma tão impressionante quanto seus avós. Da televisão para os computadores para os smartphones; o programa espacial e o transporte aéreo barato e onipresente; a cirurgia robótica e a engenharia genética.

E no entanto, através de tudo isso, é bem provável que o ambiente físico do lugar onde você vive não tenha mudado muito.

Mais do que isso, é provável que você nem mesmo reconheça isso como algo estranho.

Nesse aspecto, o Experimento Suburbano representou uma mudança de paradigma verdadeiramente massiva. Bairros inteiros foram construídos sob o pressuposto explícito de que não evoluiriam, e sob restrições legais para garantir isso. Isso não foi algo que simplesmente aconteceu como uma natural evolução econômica ou cultural, foi uma mudança ideológica explícita, articulada abertamente por alguns de seus primeiros defensores.

J.C. Nichols é um exemplo clássico. O lendário desenvolvedor de Kansas City é um dos pais do Experimento Suburbano. Começando em 1906 e continuando em fases até 1950, Nichols criou o distrito de Country Club em Kansas City. Ele usou ideias de subúrbios planejados anteriores como Riverside, Illinois (1869), e Roland Park, Maryland (1893).

Leia mais: “Bairros planejados” de São Paulo: oportunidades desperdiçadas

A verdadeira inovação de Nichols não foi no projeto, mas na venda. Mais do que qualquer outra pessoa, J.C. Nichols vendeu a ideologia do experimento suburbano para seus compradores. Aqui estão trechos de um discurso proferido por Nichols à Associação Nacional de Conselhos Imobiliários em 1948, intitulado “Planejando para a permanência”:

“Essas são as garantias que devemos dar às futuras gerações: que as crianças possam nascer, crescer e ainda viver no bairro de seus antepassados. Que o lar, a posse mais preciosa da vida – o verdadeiro legado de um povo livre – tenha valor permanente e um entorno desejável, saudável e inspirador por muitas gerações. Que tenha custos de depreciação baixos, que tenham empresas de empréstimo bem seguras com empréstimos de longo prazo e que seja onde as casas vão envelhecer com graça.”

Para fornecer essas garantias, Nichols defendeu que cada detalhe físico de um bairro fosse meticulosamente planejado e rigorosamente gerido:

“A inserção gradual de um uso incongruente e prejudicial pode ser tão pequena no início que pode passar despercebida, mas ao longo dos anos sua expansão pode destruir o valor de uma grande área residencial. Acordos judiciais privados e restritivos devem controlar as áreas residenciais… O poder de fiscalização deve estar nas mãos dos proprietários, assim como do desenvolvedor. Tais restrições devem controlar o uso da propriedade, os recuos, os espaços livres, o projeto arquitetônico, os custos mínimos ou o número mínimo de metros quadrados em cada casa, entre outros aspectos. Essas restrições se tornam os pilares fortes e protetores das áreas residenciais.”

Você pode ouvir nas palavras de Nichols os ecos das ideias que estavam mudando a sociedade em geral. O meio do século 20 foi a era do modernismo científico, a crença de que o mundo poderia ser racionalmente ordenado e otimizado para o florescimento humano.

Nichols também foi pioneiro na abordagem orientada para o consumidor nas cidades, que começou a substituir a orientação cívica. Ao comprar uma casa de J.C. Nichols, você estava explicitamente comprando o bairro como um produto. Era um pacote de amenidades que faziam parte do discurso de venda e da proposta de valor financeiro. (Vale a pena notar que uma das amenidades era a exclusão. Todas as casas no distrito de Country Club tinham restrições raciais em seus títulos, proibindo sua venda para compradores não-brancos, em vigor até que a Suprema Corte dos EUA invalidou tais convênios em 1948.)

Você pode ouvir alguns ecos de Nichols nas pessoas que hoje se opõem ao desenvolvimento ou às mudanças no zoneamento em seus bairros, como sua preocupação com a ameaça de “usos incongruentes e prejudiciais” que poderiam degradar o valor de um lugar. Raramente você vai a uma audiência pública sobre uma proposta de desenvolvimento em uma cidade sem ouvir alguém testemunhar uma versão de: “eu comprei nesta vizinhança porque gostei do caráter do bairro. Se eu quisesse viver em um lugar com a característica X, teria comprado uma casa lá.” O “caráter” de um lugar, segundo esse raciocínio, é uma comodidade que o orador comprou e, portanto, tem direito de continuar desfrutando.

Leia mais: Como discussões sobre “caráter de bairro” reforçam o racismo estrutural

Talvez em um mundo de terras infinitas e transporte instantâneo, essa seria uma proposição viável. No mundo em que vivemos, no entanto, isso logo entra em conflito com as forças que atuam sobre as cidades, garantindo que elas vão mudar, gostemos ou não.

Nichols acreditava que essa mudança poderia ser canalizada e, por fim, controlada:

“Os municípios, condados e utilidades públicas deveriam ser capazes de planejar e investir com a garantia de estabilidade de longo prazo. Sim, particularmente nossos centros comerciais, tão importantes para todas as nossas cidades, deveriam ter áreas residenciais permanentes e padrões cívicos nos quais planejar e dos quais depender. Não sou um daqueles que preveem um grande êxodo de nossas grandes cidades.”

Ele disse isso em 1948. O êxodo já estava em andamento. Nas décadas seguintes, milhões de americanos viram seus bairros se deteriorarem em miséria e pobreza.

Hoje, milhões de americanos enfrentam um problema diferente: bairros e cidades inteiras que se tornaram enclaves rigidamente engessados, não de pobreza, mas de riqueza. Esses são lugares onde as crianças não podem sonhar em um dia voltar a viver em sua cidade natal, onde restaurantes fecham porque não conseguem encontrar trabalhadores que possam pagar para viver nas proximidades, onde escolas não conseguem contratar professores ou motoristas de ônibus suficientes.

Muitos desses lugares foram construídos em linhas muito próximas das que Nichols defendeu em seu discurso: seu caráter físico consagrado em leis ou restrições de escritura, garantido nunca mudar, e esse fato explicitamente anunciado aos compradores potenciais como um benefício. Nossas cidades, desde a Segunda Guerra Mundial e acelerando no século 21, tornaram-se dominadas por “zonas sem construção”, onde praticamente nenhuma nova construção pode ocorrer.

Onde o tecido social está se desfazendo, a imutabilidade do tecido físico é parte da razão.

É hora de aposentar o conceito de “consolidado”

Precisamos retornar ao paradigma que construiu tanto a Brainerd do início do século quanto a Nova York da mesma época, e dezenas de milhares de outros lugares entre elas. Esse paradigma é o de que os lugares onde vivemos nunca estão “consolidados”.

Uma cidade ou até mesmo um bairro precisa estar em constante mudança para atender às necessidades de um grupo de pessoas que também estão em constante mudança. Isso inclui o crescimento populacional e, às vezes, a diminuição da população, por razões que — precisamos ter a humildade de aceitar — estão em grande parte fora do controle dos líderes locais. Isso também inclui mudanças no que precisamos ou queremos dos nossos espaços públicos e privados.

Leia mais: Qual o “caráter original” de um bairro?

Esse processo só pode produzir resiliência se não for gerido de cima para baixo. Não por planejadores com mapas, não por grandes incorporadores, e, crucialmente, também não por uma simples maioria democrática ou um comitê participativo (leia-se: associação de moradores) se o resultado final for o mesmo estado de rigidez. Os tomadores de decisão devem ser muitos, não poucos.

Jane Jacobs escreveu: “As cidades têm a capacidade de fornecer algo para todos, apenas porque, e somente quando, elas são criadas por todos.” Isso significa que realmente precisamos ser livres para fazer a criação, e não apenas votar sobre ela.

Uma cidade é um ser vivo: é o nosso habitat humano. E a criação, no mundo vivo, nunca é um ato único. É um processo interminável.

Artigo originalmente publicado em Strong Towns, em junho de 2022.

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