Mais um Maio Amarelo acabou. E o que mudou nas cidades?
Após o mês do movimento de conscientização para a redução de acidentes de trânsito, precisamos refletir sobre como temos lidado com esse problema.
A pesquisa do Instituto Corrida Amiga revela vários desafios e falhas nos tempos para a travessia de pedestres nas cidades, que são, muitas vezes, insuficientes.
7 de julho de 2025A mobilidade urbana brasileira é resultado de escolhas políticas e técnicas que deliberadamente colocam a fluidez dos automóveis acima da segurança de quem caminha — apesar de a caminhada ser o modo mais utilizado pela população, conforme indicam dados de divisão modal em diversas cidades brasileiras. O tempo semafórico insuficiente para a travessia de pedestres está escancarado no cotidiano de quem atravessa as ruas e é uma consequência direta de um modelo de cidade que naturaliza o risco para os mais vulneráveis e transforma a travessia em um teste de resistência. Não se trata de falha técnica, mas de um modelo urbano que historicamente vem decidindo quem deve esperar e quem tem prioridade para seguir. E é nesse sentido que a travessia se torna, mais do que uma passagem física, um verdadeiro indicador de (in)justiça urbana.
No intuito de evidenciar e transformar essa realidade, o Instituto Corrida Amiga lançou, em 2019, a campanha Travessia #Cilada, pesquisa de ciência cidadã que mapeia cruzamentos em que os tempos semafóricos são inadequados, a partir da percepção da população. Em 2024, no contexto do Maio Amarelo, foi realizada a segunda edição da campanha, com expansão para 21 cidades brasileiras e uso estruturado da ciência cidadã como metodologia participativa e científica. Os dados revelaram um cenário preocupante: em 54% dos semáforos de pedestres analisados, o tempo de travessia era igual ou inferior a 10 segundos, com média nacional de apenas 7 segundos. Enquanto isso, o tempo de espera do pedestre até chegar a sua vez era, em média, de 2 minutos e 11 segundos (131 segundos).
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Em maio de 2025, a Prefeitura de São Paulo reconheceu as falhas nos tempos de semáforo apontadas pela campanha e anunciou medidas corretivas. Para verificar se a prefeitura realmente havia feito seu trabalho, fomos a campo novamente e aplicamos o Índice de Desigualdade Temporal (IDT), que leva em consideração o tempo disponível para a travessia (verde + vermelho piscante), a largura da via e a velocidade de caminhada de diferentes perfis* de pedestre. Dentro dessa metodologia, o IDT é considerado adequado quando está acima de 1.
A nova rodada de dados coletados em 2025 mostrou que, em 44% das travessias monitoradas, o tempo verde permaneceu entre 4 e 5 segundos. 90% delas seguiam inadequadas para quem caminha a 0,6 m/s (crianças e pessoas com deficiência) e 80% para quem caminha a 0,8m/s (idosos).
Essa configuração contraria não apenas o “bom senso” urbano, mas também uma série de marcos legais nacionais. O Código de Trânsito Brasileiro (CTB) estabelece que os veículos devem proteger os modos mais vulneráveis, cabendo ao maior zelar pela segurança do menor. A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência e a Norma Técnica de Acessibilidade determinam parâmetros específicos para acessibilidade em espaços públicos, incluindo tempos de travessia compatíveis com diferentes perfis populacionais. A Política Nacional de Mobilidade Urbana também define como prioridade os modos ativos e coletivos de transporte.
O cálculo dos tempos de travessia, ainda amplamente baseado em uma velocidade padrão de 1,2 m/s, ignora a realidade de grande parte da população. Segundo o artigo “Walking speed of older people and pedestrian crossing time”, 97,8% dos idosos não atingem essa velocidade, e caminham, em média, a 0,8 m/s. Para crianças pequenas e pessoas com deficiência, a velocidade segura cai para 0,6 m/s, conforme parâmetros legais e técnicos já reconhecidos.
Para compensar o tempo verde reduzido, muitas cidades recorrem ao vermelho piscante como extensão da travessia. Uma pesquisa da CET-SP (2022) confirma que o sinal piscante causa confusão: 63,9% dos pedestres interrompem a travessia e 17,9% aceleram o passo, comportamento que eleva o risco de atropelamentos. Além disso, o Manual Brasileiro de Sinalização é claro: esse tempo serve apenas para que quem já está na faixa conclua a travessia com segurança — não deve ser usado para iniciá-la. Essa defasagem se agrava ao se considerar o tempo de reação, ou seja, o intervalo entre o acendimento do verde e o início do movimento. Pesquisas mostram que adultos levam cerca de 1,93 segundos para começar a andar, enquanto idosos precisam de até 2,5 segundos. Em muitos cruzamentos com apenas 4 ou 5 segundos de verde, atravessar com segurança é praticamente impossível.
A espera também faz parte do problema. Esperas prolongadas estão diretamente associadas a comportamentos de risco. Em Pequim, metade das pessoas desrespeitam a sinalização após 50 segundos de espera. Na Índia, o percentual de infrações sobe para 55%. Ou seja, a própria lógica da sinalização atual incentiva o risco.
A Travessia #Cilada é um exemplo de como a ciência cidadã pode operar como método científico legítimo no campo da mobilidade urbana. Com base em protocolos padronizados, pessoas comuns foram treinadas para coletar, registrar e validar dados sobre tempos semafóricos. O uso desse método, além de gerar evidência técnica, empodera a população e amplia a legitimidade das demandas por mudanças. O Instituto Corrida Amiga integra a CIVIS, plataforma de Ciência Cidadã desenvolvida a partir da EU-Citizen Science, que reúne iniciativas voltadas à justiça social, ambiental e urbana. A prática ainda é rara no urbanismo brasileiro, mas experiências internacionais como o projeto europeu WeCount mostram seu potencial para influenciar políticas públicas de transporte e segurança viária.
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Há uma contradição entre a legislação brasileira, que valoriza a mobilidade a pé, e a prática nas travessias sinalizadas, marcada por tempos insuficientes e infraestrutura excludente. Embora o Estatuto do Pedestre, em vigor no município de São Paulo, represente um avanço ao estabelecer parâmetros mais inclusivos, como velocidades diferenciadas por perfil etário e físico e limite máximo de espera de 90 segundos, seu alcance é restrito ao contexto local. Ainda assim, constitui uma diretriz relevante que pode inspirar mudanças normativas em âmbito federal e em outras cidades. Para enfrentar esse descompasso, propõe-se a revisão urgente do Manual Brasileiro de Sinalização de Trânsito – especialmente no uso do vermelho piscante como fase principal da travessia e da velocidade padrão de cálculo de 1,2 m/s –, além da reformulação das travessias com base nas leis de acessibilidade e inclusão. Traduzir o marco legal em políticas públicas concretas é essencial para garantir cidades mais justas, acessíveis e centradas nas pessoas.
Autores: Silvia Stuchi, Meli Malatesta, Elky Santos, Graziela Mingati, Viviane Barbosa, Arthur Santana, Renata Marè, Marcus Magalhães
* Perfis adotados:
0,6 m/s – crianças e pessoas com deficiência
0,8 m/s – pessoas idosas
1,0 m/s – adultos médios
1,2 m/s – parâmetro técnico-padrão
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