A praça, os parques e o preço dos impasses
Parque Augusta. Foto: Prefeitura de São Paulo

A praça, os parques e o preço dos impasses

Dificuldade de conciliação entre interesses públicos e privados gera gasto desnecessário de energia dos envolvidos e cobra da cidade de São Paulo um preço altíssimo em termos de desenvolvimento urbano.

17 de junho de 2024

Podem me julgar, mas, entre passar 1 hora na esteira da academia ou fazer, em 1 hora, a pé, o percurso de casa ao trabalho que poderia levar apenas 15 ou 20 minutos de carro, sempre vou preferir a caminhada pela cidade.

Estou plenamente de acordo com as ideias do Daniel Lieberman, paleoantropólogo da Universidade de Harvard e autor de “Exercise”, para quem o ser humano não teria evoluído para fazer exercícios – os quais, do ponto de vista evolutivo, seriam uma atividade estranha, já que nós, humanos, estaríamos programados para evitar esforços desnecessários, conforme disse em entrevista para a BBC.

Se estamos programados para evitar esforços desnecessários quando o assunto é atividade física, será que podemos dizer o mesmo em relação às disputas e conflitos que envolvem o espaço urbano? Pois vejamos.

Na caminhada de volta para casa, não só faço exercício físico como posso observar, por exemplo, o contraste entre os muitos condomínios murados sem graça e o belíssimo Edifício Jaraguá, obra do Paulo Mendes da Rocha sem grades, sem muros e com um belo espelho d’água em frente, em uma pracinha aberta para a cidade e com vista bem interessante de um dos pontos mais altos do bairro.

Edifício Jaraguá, na Vila Pompeia. Foto: Google Street View

Também sem qualquer preocupação em pegar o trajeto mais curto, da última vez em que fiz esse caminho resolvi atravessar a Praça da Nascente, um dos poucos espaços verdes e públicos do bairro, quando fui então tomado por uma espécie de melancolia. Após ter sido adotada em 2013 pelo coletivo Ocupe e Abrace, que regenerou nascentes, criou pequenos córregos, lagos, instalou brinquedos e fez da praça um espaço de convívio, ela se encontrava novamente abandonada, com mato muito alto, mobiliário enferrujado ou quebrado e pouquíssimos frequentadores que ainda se aventuravam ali com seus cães de estimação. (*)

Enquanto o bairro se adensa em termos construtivos e muitos moradores reclamam da verticalização desenfreada, uma das suas raras áreas verdes se encontrava novamente esquecida, abandonada e degradada. A atuação do coletivo Ocupe e Abrace precisa ser exaltada, sem dúvida, mas, ao mesmo tempo, é preciso reconhecer que há algo muito problemático na nossa relação com os espaços públicos; e também que é muito difícil manter uma área verde de 12 mil metros quadrados sem zeladoria constante e um volume considerável de recursos públicos ou privados.

Um dos poucos terrenos em que não há prédios sendo construídos por ali, na altura do número 2195 da Avenida Pompeia, é refém de uma longa disputa judicial: a construtora foi impedida de erguer um edifício de 22 andares pelo risco que ele representaria para as nascentes de água que afloram na região; vizinhos, por sua vez, lutam para que o terreno seja incorporado à área da praça. Ainda sem desfecho à vista, o que havia ali, por enquanto, era uma praça abandonada e um terreno baldio cercado por tapumes, deixando de cumprir qualquer função social, portanto, além de comprometer a segurança e a vitalidade do bairro.

Terreno vazio na altura do número 2195 da Avenida Pompeia, ao lado da Praça da Nascente. Foto: Google Street View

O caso da Praça da Nascente é apenas mais um entre tantos exemplos de como a disputa pelo território, a falta de confiança e a dificuldade de conciliar interesses levam a resultados em que todos perdemos. Outro exemplo são os tombamentos: na legítima e desejável ânsia de se preservar o patrimônio histórico e arquitetônico da cidade e evitar que ele seja simplesmente demolido para dar lugar a prédios de gosto duvidoso, recorremos ao tombamento. Entretanto, sem iniciativas que amenizem os custos de manutenção para os proprietários e incentivem diferentes tipos de uso e ocupação, muitas vezes os imóveis tombados acabam abandonados.

Uma das soluções já aventadas para o problema do terreno vizinho à Praça da Nascente seria incorporá-lo à praça e, como contrapartida, a construtora dona do terreno poderia ser compensada com certificados de potencial construtivo para erguer prédios em outros lugares, algo semelhante ao que aconteceu no imbróglio do Parque Augusta – por sinal, mais um exemplo de como a dificuldade de conciliação entre interesses públicos e privados pode cobrar um preço caro para a cidade.

Ainda que seja celebrada como uma vitória da sociedade civil contra a verticalização desenfreada do centro expandido, não podemos ignorar o custo altíssimo da implantação do Parque Augusta para São Paulo, conforme muito bem analisado por Anthony Ling e Guilherme Pereira em artigo para o Caos Planejado. Os certificados concedidos para as construtoras valeriam o equivalente a R$ 205 milhões, enquanto elas teriam gastado cerca de R$ 110 milhões para adquirir e manter o terreno – um “negócio da China”, conforme classificou matéria do El País.

Não custa lembrar que a ideia inicial para o terreno do Parque Augusta, inclusive aprovada na época pelo Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo), era que os três prédios previstos para serem erguidos ocupassem apenas cerca de 30% do terreno, e os 70% restantes se transformassem em um parque aberto ao público, mas com administração particular.

A compreensível desconfiança da população em relação à qualidade dos espaços privados de uso público – já tratei do tema em artigo no Caos Planejado – barrou o projeto, e a solução chegou alguns anos mais tarde, com o alto preço que já comentei, além de um elevadíssimo gasto de energia em conflitos e disputas judiciais.

No imbróglio do terreno no entorno do Teatro Oficina, que já se arrasta por 40 anos, tudo indica que teremos um desfecho semelhante ao do Parque Augusta: sem qualquer consenso em torno de um projeto privado que respeitasse e valorizasse o patrimônio arquitetônico da obra tombada da Lina Bo Bardi, a saída deve ser a compra do terreno pela Prefeitura – que, inclusive, já acertou a sua aquisição por R$ 64 milhões, sendo que a maior parte do valor (cerca de R$ 50 milhões) deve vir de um acordo firmado pelo Ministério Público que prevê a destinação de recursos de uma ação judicial para a implantação do Parque do Rio Bixiga.

O Teatro Oficina e o terreno vazio no entorno, usado há anos como estacionamento após projetos de construção de shoppings, torres comerciais e residenciais terem sido barrados. A expectativa agora é que seja implantado ali o Parque do Rio Bixiga. Foto: Google Street View

Conforme concluem Anthony Ling e Guilherme Pereira em seu artigo, “escolhas extremamente onerosas diminuem o potencial de serem repetidas, o que nos faz pensar na necessidade de outras soluções que não só otimizem o uso de recursos municipais como a sua distribuição social e geográfica na cidade”.

Essas soluções, me parecem, passam pela capacidade de desenvolvermos projetos que aliem interesses públicos e privados, garantindo lucro para as construtoras e espaços públicos de qualidade e bem preservados para a cidade. Nesse sentido, temos muito o que reaprender com obras como a do Edifício Jaraguá, vizinho à Praça da Nascente – um empreendimento privado belamente integrado ao entorno. A praça ao lado do Shopping Cidade de São Paulo, no quarteirão entre a Alameda Santos, a Rua Pamplona e a Avenida Paulista, trouxe verde para a região, vive cheia e me parece um bom exemplo de espaço privado de uso público que deu certo. O Conjunto B32, na Faria Lima, é outro modelo de empreendimento recente cuja valorização inclusive parece relacionada à capacidade de atender o interesse público.

Praça do Conjunto B32, na Faria Lima. Foto: Roberta Inglês

Criar ou fortalecer a atuação de conselhos participativos e deliberativos para projetos específicos, em casos mais polêmicos como o da Praça da Nascente e do Teatro Oficina, com a participação da sociedade civil e especialistas das diferentes áreas envolvidas, também poderia ser um caminho na construção de consensos, elaboração de projetos de qualidade e redução de gastos desnecessários de energia com conflitos e longas disputas judiciais.

Convênios e parcerias com o setor privado para a conservação de praças já existem, mas os resultados ainda deixam a desejar e muitas vezes se resumem a conservar o espaço e colocar uma placa com o nome da empresa, sem investimentos para possibilitar diferentes usos para o equipamento público.

Sabemos que os recursos municipais são escassos diante das muitas necessidades da cidade, de forma que investimentos privados e manutenção particular de espaços públicos devem ser incentivados, aproveitados, fiscalizados e aperfeiçoados sempre que houver oportunidade.

O que não faz o menor sentido é que, em regiões tão carentes de áreas verdes e espaços públicos, com terrenos cada vez mais valorizados – como é o caso do centro expandido de São Paulo como um todo, e da Vila Pompeia e do Bixiga em particular –, continuemos convivendo com praças abandonadas, prédios vazios, terrenos baldios ou espaços tão mal aproveitados.

Também não faz sentido que continuemos dispendendo tantos esforços desnecessários em longas disputas que apenas agravam os problemas urbanos – e cuja solução normalmente acaba envolvendo grandes volumes de recursos públicos direcionados para as áreas mais ricas da cidade.

(*) Recentemente a Praça da Nascente voltou a receber ações de zeladoria (parte do mato foi aparada) depois de anos de abandono. Isso em nada muda as questões levantadas pelo artigo caso as ações não façam parte de uma estratégia de limpeza e manutenção constantes da praça.

Vitor Meira França é economista pela FEA-USP e mestre em economia pela EESP-FGV

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