A epopeia para uma pessoa com deficiência conseguir votar
Ricky Ribeiro, fundador do Mobilize Brasil, descreve sua aventura para percorrer 1 km e chegar até a seção eleitoral: postes, falta de rampas, calçadas estreitas, entulhos...
Ricky Ribeiro, fundador do Mobilize Brasil, descreve sua aventura para percorrer 1 km e chegar até a seção eleitoral: postes, falta de rampas, calçadas estreitas, entulhos...
17 de outubro de 2024Fui diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica (ELA) em setembro de 2008, dias antes das eleições municipais. Eu morava em Recife, mas não havia transferido meu título de eleitor, até porque continuava vindo muito para São Paulo. Como nessa época eu conseguia andar, embora mancando, fui votar no Colégio Colaço, no centro histórico de Santana de Parnaíba. Apesar do local ficar em uma subida, numa rua de paralelepípedos, e precisar subir escada, não tive nenhum problema. Dois anos depois, nas eleições de 2010, foi bem mais complicado, pois eu já estava em uma cadeira de rodas. Meus pais foram me levar de carro e estacionamos em um lugar plano dentro do colégio, mas todas as seções eleitorais eram no andar de cima, e não tinha rampas nem elevadores. Diante da situação, quatro pessoas desconhecidas carregaram a cadeira, comigo junto, tanto escada acima como escada abaixo depois da votação.
Eu não pude votar nas eleições seguintes, já que fiquei anos sem sair de casa após ter feito a traqueostomia, como conto no artigo “A acessibilidade necessária para uma cadeira de rodas motorizada”. Fiquei 12 anos sem participar da chamada “festa da democracia” até que, em 2022, com meu título de eleitor regularizado e minha seção eleitoral transferida para o Colégio Objetivo/Unip, que fica perto de casa, fui com a van adaptada votar. Já em 2024, com um belo dia de sol, resolvi ir até o local de votação a pé, ou melhor, de cadeira de rodas. Afinal, gosto de circular, observar a cidade e ver pessoas, em vez de ficar trancado num carro, isolado do mundo, enfrentando congestionamentos.
Às vezes fico em São Paulo, na região da Avenida Paulista, um dos lugares da capital com melhor acessibilidade, e faço tudo sem precisar de carro, como conto no livro Movido pela Mente. Alphaville, bairro de Santana de Parnaíba onde moro, é arborizado e muito seguro, mas raramente saio de casa caminhando. Desta vez eu fui de cadeira de rodas e vou contar a saga que foi.
A distância entre minha casa e o Colégio Objetivo é de apenas 1km, que pode ser percorrida a pé em 17 minutos segundo o Google Maps. Mas demoramos mais de 1h nesse trajeto. No começo estava indo bem, apesar da calçada ser estreita e ter postes no meio. Daí começaram os problemas. Primeiro veio um cruzamento sem faixa de pedestres nem rampa de acesso. Descemos a cadeira na avenida, onde os automóveis trafegam em alta velocidade, para atravessar. Depois piorou, pois tivemos que percorrer um trajeto com a cadeira na avenida na contramão, já que passa um túnel por baixo e, neste trecho, não tem calçada. Como minha cadeira motorizada sozinha pesa 200 kg, andamos na avenida até chegar no ponto de ônibus, onde tivemos que pedir ajuda para levantar a cadeira e subir no meio fio. De volta à calçada, acessamos a passarela de pedestres, que possui um elevador com o símbolo para PCD. Mas fica a pergunta: como podem pensar em colocar um elevador para pessoas com deficiência e não lembrarem de instalar uma simples rampa nas calçadas em volta?
Além disso, construir uma passarela de pedestres em um lugar com colégio, universidade e mercado só mostra que, na visão dos governantes, os carros são mais importantes que os pedestres. Do outro lado da avenida, a prioridade aos automóveis seguiu prevalecendo. Depois de andar dentro de um posto de gasolina, no acesso para carros de uma grande rede de supermercados e na calçada estreita e mal cuidada de um estacionamento, chegamos ao local de votação.
O colégio está com boa acessibilidade, dotado de rampas e elevadores grandes, bem diferente de quando estudei lá, há mais de 25 anos. (Ops…Entreguei minha idade rs). A votação foi a parte mais fácil. Foi ótimo encontrar amigos, vizinhos e até a Talita, que estudou comigo nesse mesmo colégio quando éramos adolescentes. Eu fiquei feliz de ver a calçada próxima ao colégio movimentada, com muitas pessoas indo votar a pé, algo corriqueiro na região da Avenida Paulista, mas pouco comum em um bairro projetado para os carros.
Na volta, que também demorou mais de 1h, fui refletindo sobre os obstáculos em um município que tem ganhado diversos prêmios de gestão pública e tem ótimos exemplos para mostrar, inclusive relacionados à acessibilidade. O centro histórico de Santana de Parnaíba, depois da reforma realizada, se tornou um lugar ideal para circular de cadeira de rodas. Por isso gosto de frequentar. Outro bom exemplo, na mesma cidade, é o Centro de Apoio de Alphaville, que teve um bom planejamento e uma reforma que priorizou a acessibilidade. Se eu enfrentei dificuldades e perigos em um município com uma das melhores gestões públicas do país, imagine os obstáculos que enfrentam cadeirantes em bairros periféricos e cidades espalhadas pelo Brasil.
Quantas pessoas com deficiência deixaram de votar nessa e em outras eleições por falta de acessibilidade? Como eu sempre digo em minhas palestras, se a cidade é cheia de obstáculos, nos faz refletir sobre onde está a deficiência, se é na pessoa ou na cidade. Pois se a pessoa conseguisse circular livremente por calçadas e transporte público, mas não pode por causa das más condições de acessibilidade, a deficiência está na cidade.
Em uma época com desastres naturais cada vez mais frequentes por causa do aquecimento global e altos gastos de saúde pública decorrentes de acidentes de trânsito e poluição, estimular a mobilidade a pé, por bicicleta e transporte coletivo deveria ser prioridade para os prefeitos e vereadores. No caso da passarela, houve uma inversão nessa prioridade. Em vez de colocar um semáforo para os carros aguardarem os estudantes e as pessoas atravessarem na faixa, obrigam os pedestres a andarem mais e subir escadas, tudo para promover a fluidez do trânsito.
A Lei 12.587/2012, que define a Política Nacional de Mobilidade Urbana, afirma que os modos ativos (pedestres e ciclistas) devem ter prioridade sobre os modos motorizados, assim como o transporte público coletivo prioridade sobre o transporte individual motorizado. E a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) garante calçadas acessíveis por todo o Brasil e altera o Estatuto da Cidade, transferindo ao Poder Público a responsabilidade pela construção e reforma das calçadas, em todos os municípios do país. Na prática, raramente essas leis têm sido cumpridas e as cidades brasileiras via de regra têm ido no sentido oposto do que vem sendo feito na maioria das cidades do mundo civilizado.
Infelizmente, no Brasil geralmente o pedestre é tratado como cidadão de segunda categoria, até porque em muitos lugares quem anda a pé, principalmente para pegar o ônibus, é a população de baixa renda, que tem bem menos influência na opinião pública e na política do que as pessoas das classes mais altas. De tanto ser desrespeitado com calçadas esburacadas e transporte coletivo ruim, a maioria dessas pessoas sonha em comprar um carro ou uma moto, gerando mais congestionamentos, acidentes, e uma piora tanto na qualidade do ar como na qualidade de vida da população. Por isso, mesmo quem não quer ou não pode abrir mão do automóvel, deveria lutar por calçadas e transporte público de qualidade. Quanto menos veículos nas ruas, melhor para todos. Eu gosto muito da frase: “País desenvolvido não é onde pobre tem carro, mas sim onde rico anda de transporte público”.
Peço desculpas pelo tom de desabafo e pela ausência de humor, típico dos outros textos do blog. Mas para não ficar apenas apontando o dedo, vou dar sugestões que, na minha opinião, como fundador do portal Mobilize Brasil e professor de mobilidade urbana sustentável, podem contribuir para uma melhora significativa na vida das pessoas, sem necessariamente gastar muito dinheiro público. Quem sabe este texto chegue aos políticos eleitos e gestores públicos em Santana de Parnaíba e outras prefeituras. Uma das sugestões é enxergar a mobilidade a pé como uma rede, ou seja, entender que o deslocamento não se dá em trechos isolados, mas dentro de um sistema interconectado de caminhos que permite o fluxo contínuo de pedestres entre bairros, serviços, e transporte público. Ver a mobilidade a pé como uma rede implica em garantir uma infraestrutura contínua, como calçadas adequadas, travessias seguras, iluminação e sinalização. E claramente, o trajeto de 1km que percorri não foi pensado em rede, pois a calçada acaba do nada, não tem faixa de pedestres nem rampa.
Outro ponto é pensar na caminhabilidade, que define o quão convidativo um lugar é para circular a pé. Em geral, possuem calçadas largas e em boas condições, bancos, boa iluminação, arborização e paisagismo, comércio interessante, e tráfego de veículos de baixa agressividade, além de serem lugares limpos, com baixa poluição atmosférica e sonora.
Leia mais: Caminhabilidade, o que é?
Em relação às calçadas, é muito importante que gestores públicos e cidadãos saibam como elas devem ser feitas. As calçadas devem ser divididas em três faixas: a faixa livre, onde as pessoas circulam, a faixa de serviço, onde devem estar localizadas árvores, postes, bancos, lixeiras, outros tipos de mobiliário urbano ou equipamentos de infraestrutura, e a faixa de acesso, que faz a transição entre a faixa livre e as edificações. As calçadas devem ter uma faixa livre de no mínio 1,20 m, sem a presença de qualquer obstáculo que impeça a livre circulação. Além disso, é importante ter uma calçada regular, firme, sem buracos, rachaduras e degraus. Isso é fundamental para prevenir acidentes e tornar o deslocamento seguro e confortável para qualquer cidadão.
Não dá para a gestão pública achar que vai resolver o problema do trânsito construindo e ampliando vias. Esse tipo de intervenção ajuda a alimentar um círculo vicioso: sem um transporte público de qualidade, ampliar vias faz com que mais pessoas migrem do ônibus para o carro e ocupem os novos espaços disponibilizados, fazendo com que o trânsito rapidamente volte aos níveis anteriores às obras. Se pensar exclusivamente em Alphaville, eu não acredito que os ônibus são capazes de atrair para o transporte público a maioria dos moradores do bairro.
Eu sou muito fã de VLT, os bondes modernos que foram implantados no Rio de Janeiro e Baixada Santista. Eu andei bastante quando morava em Barcelona. Imagino que seja uma ótima alternativa para Alphaville, já que o VLT pode circular pela grama. Isso faz com que seja viável sem suprimir uma faixa de rolagem nem descaracterizar o canteiro central, diferente de corredor de ônibus ou BRT. Além disso, o VLT é bonito, silencioso, polui menos, se integra melhor ao ambiente urbano e é capaz de atrair mais gente ao transporte coletivo.
Vocês conseguem imaginar uma cidade inteligente e agradável cheia de congestionamento, acidente e poluição? No meu imaginário de cidade, políticas são feitas e decisões são tomadas pensando nas pessoas – de todas as idades, origens e classes – e não nos automóveis. Isso pressupõe cidades mais humanas e democráticas, com valorização dos espaços públicos, transporte público de qualidade, mais estrutura cicloviária e calçadas acessíveis, poucos acidentes e um ar limpo.
Mobilidade urbana é um fator determinante para a qualidade de vida das pessoas nas cidades e tem relação direta com o combate ao aquecimento global, com a melhora na saúde da população, com a equidade e eficiência dos gastos públicos e com inúmeros outros fatores ambientais, sociais e econômicos.
Como esse artigo é sobre eleições, eu acho fundamental que todos os vereadores e gestores públicos, mesmo que atuem nas mais diversas áreas, tenham conhecimento sobre esses temas. Afinal, urbanismo, acessibilidade e mobilidade urbana sustentável garantem à população o acesso à cidade e às oportunidades de emprego, estudos, lazer e serviços públicos. Portanto, são vitais para um bom funcionamento de diversas outras áreas de uma cidade que pretende ser inteligente. São temas transversais, com impacto direto em outros assuntos relacionados à vida urbana, como habitação, trabalho, saúde, segurança, educação e tantos outros.
Além disso, para quem ainda não conhece, recomendo ler grandes pensadores de cidades, como Jane Jacobs e Jan Gehl, assistir o canal do youtube São Paulo nas Alturas, do jornalista Raul Juste Lores e também acessar o portal Mobilize. Para finalizar, eu convido os vereadores e o prefeito eleitos a caminharem comigo nesse ou em outros trajetos do município, de preferência usando uma cadeira de rodas.
Leia mais: Calçadas brasileiras revelam negligência com o pedestre
A acessibilidade deve ser pensada contemplando todos, não só cadeirantes, mas também idosos, crianças, pessoas com malas, carrinho de bebê ou carrinho de feira, e mesmo adultos saudáveis. Entretanto, se o planejamento for feito pensando em alguém de cadeira de rodas ou com andador, muito provavelmente também servirá para todos os demais. Como diz o Enrique Peñalosa, ex-prefeito de Bogotá, capital da Colômbia: “uma cadeira de rodas é a máquina do planejamento urbano”.
Artigo originalmente publicado em Mobilize Brasil, em outubro de 2024.
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