A casa de “Ainda Estou Aqui” e a evolução urbana do Leblon
Foto: Domínio Público

A casa de “Ainda Estou Aqui” e a evolução urbana do Leblon

As transformações no lote da casa do filme ao longo dos anos ajudam a entender como se deu o desenvolvimento urbano do bairro do Leblon, no Rio de Janeiro.

9 de dezembro de 2024

Ao assistir ao novo filme do cineasta Walter Salles, “Ainda Estou Aqui”, chama a atenção, especialmente para quem se interessa por arquitetura e urbanismo, a casa onde se passa a maior parte da história. Localizada na orla do Leblon, mais precisamente na Avenida Delfim Moreira, número 80, esquina com a Rua Almirante Pereira Guimarães, essa residência foi, antes do desaparecimento de Rubens Paiva, o centro das atividades da família. Com a praia como pano de fundo, ela representava não apenas um lar, mas também um espaço de convivência em um bairro cuja paisagem era marcada por casas e áreas de lazer que integravam a vida dos moradores. Cabe ressaltar que as filmagens foram feitas em outro local, pois, como veremos, a casa não existe mais e deu lugar a um edifício residencial.

Localização da antiga casa. Foto: Google Earth

Mas como o Leblon passou de um bairro com casas como aquela para um cenário predominantemente composto por prédios de alto padrão, onde alguns apartamentos ultrapassam os 100.000 reais por metro quadrado? Este texto se propõe a explorar a evolução urbana do bairro, analisando as transformações que moldaram sua identidade atual e os fatores que levaram à valorização extrema do mercado imobiliário local.

O bairro está localizado entre o Morro Dois Irmãos e o canal do Jardim de Alah. Sua urbanização teve início em 1901, como ocorreu em muitos bairros da zona sul, a partir do loteamento de grandes chácaras e engenhos. Nos primeiros 20 anos do século 20, a única tipologia habitacional presente eram casas. Na época, ainda não havia demanda por edifícios de apartamentos, o que explicava os lotes com pouca frente e profundidade.

A partir da década de 1920, assim como em outros bairros da zona sul, iniciou-se a transformação desses pequenos lotes destinados a casas em terrenos para edifícios multifamiliares. Essa mudança marcou o início de uma nova configuração urbana.

Como podemos observar no perfil da evolução urbana do bairro, a primeira onda de edifícios era composta por construções de três pavimentos. A entrada principal ficava levemente elevada em relação ao nível da calçada, permitindo a inclusão de unidades já no primeiro andar. Um aspecto curioso é que muitos desses edifícios já previam vagas para veículos, por conta do aumento desse tipo de transporte e da faixa de renda do bairro,  algo inovador e que os diferenciava de construções em outros bairros da cidade.

Perfil da evolução urbana do Leblon do livro O Rio de Janeiro nas alturas. Imagem: Cardeman e Cardeman, 2004.

A partir desse ponto, o bairro foi se desenvolvendo, com a substituição gradual das casas por edifícios. Como uma tradição dessa transformação, os edifícios eram construídos sem alteração do perfil dos lotes, o lote de casa se transformava em edifício, o que ajudou a construir a ambiência existente no bairro e sua vitalidade. O Leblon, em particular, tornou-se um exemplo dessa evolução urbana, abrigando construções erguidas sob diferentes legislações urbanísticas que a cidade atravessou ao longo do tempo. Por essa razão, o bairro oferece um retrato único das transformações na paisagem urbana do Rio de Janeiro.

Nas décadas seguintes, com base no Decreto de 1937, os edifícios começaram a ganhar mais pavimentos. Inicialmente, passaram a ter quatro andares. Porém, em 1951, com a introdução do conceito de pilotis na legislação urbanística, os edifícios passaram a contar com quatro pavimentos sobre um pilotis, além de um pavimento de cobertura com 20% de ocupação da área.

Entre a década de 1960 e a primeira metade da década de 1970, ocorreu uma intensa verticalização, com a construção de edifícios altos e de diversos pavimentos. Nesse período, não havia regulamentação quanto ao coeficiente de adensamento; a única exigência se limitava aos afastamentos frontal e lateral (ou “recuos”, como são chamados em outras cidades). Na legislação de 1970, apenas o afastamento frontal era obrigatório, permitindo que as edificações fossem construídas junto às divisas laterais.

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A partir da década de 1980, a legislação passou a impor limites ao coeficiente de adensamento, restringindo o gabarito das edificações a oito pavimentos: cinco de apartamentos, um de uso comum e dois destinados a garagens. Esse é o perfil do edifício que substitui a antiga residência da família Rubens Paiva, como podemos observar na foto abaixo.

Edifício construído onde era a casa da família Rubens Paiva. Foto: Rogerio Cardeman, 2024.

Diante do aumento da verticalização no bairro e da vontade de impor limites a esse crescimento, foi aprovado, em 1986, o Plano de Estruturação Urbana (P.E.U.) do Leblon. Esse plano dividiu a área em grupos de ruas, cada qual com um limite máximo de altura permitido para as edificações. Em vez de limitar o número de pavimentos, o P.E.U. estabeleceu alturas máximas, promovendo uma ambiência urbana agradável, para que todos os prédios apresentassem uma relação harmoniosa com a escala da rua.

Assim, o bairro foi segmentado em zonas com alturas máximas definidas: 11 metros, 25 metros, 34 metros (para edifícios com afastamento) e até 40 metros, exclusivas para a Avenida Ataulfo de Paiva. Com essa limitação, a oferta de unidades diminui, o que aumenta o valor dos imóveis do bairro, que só foi crescendo até os dias de hoje, devido à alta demanda. Pelo valor que o bairro adquiriu atualmente e o esvaziamento da área central da cidade, alguns imóveis residenciais têm sido transformados em escritórios, como falado em meu artigo de 2023, “O Leblon pode perder seus moradores?”.

Ainda assim, a transformação de casas e pequenos edifícios no bairro continuava em ritmo acelerado, dando lugar a novas construções. Essa dinâmica persistiu até julho de 2001, quando a criação da Área de Proteção do Ambiente Cultural (APAC) do Leblon trouxe uma medida decisiva para preservar a identidade e a ambiência do bairro. A Prefeitura buscou proteger seu desenho urbano, padrão de ocupação e qualidade de vida, elementos que caracterizam sua paisagem tradicional. Diversos edifícios foram tombados por sua importância histórica e cultural, assegurando a preservação de suas volumetrias e elementos arquitetônicos, como as fachadas.

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Quanto aos usos das edificações, o bairro sempre foi predominantemente residencial, com permissões para atividades comerciais em algumas ruas específicas. Na Avenida Ataulfo de Paiva, predominava o uso voltado ao comércio e serviços. Já na Avenida Delfim Moreira, onde ficava a casa de Rubens Paiva, o uso se direcionou para o turismo, o que resultou na conversão de muitas residências em restaurantes. A Rua Dias Ferreira, por sua vez, se destacou nos últimos anos como a via com maior concentração de bares e restaurantes, tornando-se uma das principais características do bairro.

Rua Dias Ferreira, no Leblon. Foto: Google Earth

É justamente essa ambiência e o estilo de vida vibrante do Leblon — com seus diversos bares, restaurantes, uma agitada vida noturna, a mistura de usos e a caminhabilidade— que impulsionaram a valorização do bairro. Essa atratividade aumentou a demanda por imóveis, tornando lucrativo substituir construções antigas por novos empreendimentos.

Em outras palavras, mais cedo ou mais tarde a casa da família de Rubens Paiva estaria destinada a desaparecer para dar lugar a uma edificação com mais área construída e abrigar uma demanda maior. Essas transformações fazem parte da dinâmica natural de crescimento das cidades, na qual, à medida que a população cresce, a demanda por moradia em áreas próximas dos serviços e oportunidades, como o Leblon, também aumenta. 

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