Mais um Maio Amarelo acabou. E o que mudou nas cidades?
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Restrições de uso e exigências edilícias tornam inviável a produção de moradias compactas e acessíveis nas áreas urbanas consolidadas.
5 de junho de 2025O déficit habitacional brasileiro permanece elevado, atingindo 6,2 milhões de domicílios em 2022 — apesar dos esforços e vultosos investimentos públicos. A dificuldade em reduzir esse número não se explica apenas por falhas na política habitacional: ela reflete também um arcabouço regulatório que, em vez de permitir soluções inovadoras, impõe obstáculos à produção de moradias acessíveis.
Entre as alternativas mais promissoras para atender a população de baixa renda estão as quitinetes. Pequenas unidades residenciais com quarto e cozinha integrados e um banheiro, elas podem ser enquadradas no zoneamento urbano em três categorias distintas, a depender da atividade exercida: uso residencial multifamiliar, quando destinadas à moradia permanente; serviços de alojamento, para estadias de curta duração; ou serviços de hospedagem, quando incluem serviços adicionais como limpeza e café da manhã. Essa versatilidade permite que as quitinetes atendam a diferentes demandas do mercado habitacional.
As quitinetes viabilizam maior adensamento em zonas centrais, permitindo a ocupação mais eficiente de regiões que já dispõem de infraestrutura de transportes, serviços públicos e equipamentos urbanos. Ao aproveitar essas infraestruturas existentes, evitam a necessidade de expansão horizontal desordenada, que gera custos elevados para o poder público e para os próprios moradores. Além disso, ao proporcionar moradia próxima aos locais de trabalho e estudo, reduzem a dependência do transporte individual motorizado, contribuindo para a diminuição dos congestionamentos, das emissões de poluentes e do tempo de deslocamento nas cidades.
Contudo, a produção formal de quitinetes é severamente restringida pelos instrumentos de planejamento urbano vigentes. Planos diretores e leis de uso e ocupação do solo (LUOS) frequentemente limitam o uso do solo a residências unifamiliares, excluindo projetos multifamiliares em áreas de alta demanda.
Para exemplificar, considere-se um terreno de 250 m², com coeficiente de aproveitamento 2: ele admite uma construção de até 500 m². Contudo, se o zoneamento permitir apenas o uso “residencial unifamiliar”, será possível construir apenas uma única residência de 500 m², impossibilitando a divisão do imóvel em unidades menores. O mesmo ocorre em terrenos maiores, como de 500 m², com coeficiente 1, onde também se veda o aproveitamento do potencial construtivo para moradias compactas. Essas situações são extremamente comuns, apesar da evidente falta de demanda para residências de grande metragem.
Mesmo onde o uso multifamiliar é permitido, exigências como quotas mínimas de terreno por unidade e parâmetros rígidos de edificação, como dimensões mínimas de unidades habitacionais, tamanhos obrigatórios de cômodos, janelas, corredores, escadas e requisitos de acessibilidade universal, tornam inviável economicamente a construção de unidades de pequeno porte. Essa combinação de restrições não apenas dificulta novos empreendimentos, mas também impede o retrofit de edifícios comerciais obsoletos para fins residenciais — uma estratégia essencial para revitalizar centros urbanos.
Leia mais: Zoneamento: uma denúncia necessária
Em alguns casos, a repressão às quitinetes é mais sutil. Mesmo em zonas de uso misto, onde se admite a convivência de usos residenciais e não residenciais, atividades classificadas como serviços de alojamento são frequentemente sujeitas a exigências adicionais, como vagas de estacionamento. A LUOS de São Paulo, por exemplo, demanda uma vaga para cada 75 m² de área construída. Uma pensão com 500 m² precisaria de seis vagas, inviabilizando esse tipo de empreendimento em terrenos pequenos.
As consequências desse arcabouço regulatório são profundas. Ao restringir a produção de moradias compactas e bem localizadas, as cidades empurram a população de baixa renda para periferias distantes, onde o acesso a infraestrutura, serviços públicos e oportunidades de emprego é limitado. O espraiamento urbano, por sua vez, eleva os custos de mobilidade, agrava a segregação socioespacial e pressiona as redes de transporte e os serviços urbanos.
Além disso, a escassez de habitações acessíveis em áreas centrais inflaciona o mercado de aluguéis, prejudicando não apenas os segmentos de menor renda, mas também trabalhadores de serviços essenciais, jovens profissionais e estudantes. Em um cenário de alta demanda e oferta artificialmente restrita, as opções legítimas se tornam proibitivamente caras, incentivando ainda mais a informalidade habitacional.
É um círculo vicioso: a própria legislação urbanística, que deveria ordenar o crescimento das cidades, acaba por gerar exclusão, informalidade e ineficiência econômica.
Diante desse quadro de ineficiência e exclusão, torna-se imperativo adotar uma mudança de rota nas políticas urbanas. Para romper esse ciclo, é fundamental adotar uma estratégia de desregulamentação inteligente, que preserve as exigências essenciais de segurança, salubridade e acessibilidade, mas elimine barreiras artificiais à produção de habitação compacta e acessível.
Isso significa, em primeiro lugar, revisar os planos diretores e as leis de uso e ocupação do solo para permitir a implantação de habitações multifamiliares e serviços de alojamento na maior parte do território urbano. Também implica reduzir ou eliminar exigências urbanísticas e edilícias desproporcionais — como quotas mínimas de terreno por unidade, obrigatoriedade de vagas de garagem e dimensões mínimas excessivas para cômodos e circulações.
No caso da adaptação de edifícios comerciais obsoletos, é imprescindível criar regimes simplificados de retrofit, ajustando as normas de acessibilidade e de prevenção de incêndio para viabilizar a transformação de prédios antigos sem exigir sua completa demolição e reconstrução.
Mais do que ampliar o potencial construtivo permitido, é preciso liberar e aproveitar de forma inteligente o potencial já existente, permitindo que o mercado imobiliário responda de maneira eficiente e dinâmica às necessidades reais da população. O objetivo é possibilitar que terrenos já urbanizados, muitas vezes ocupados por edificações antigas ou subutilizadas, sejam aproveitados de forma mais racional e inclusiva, com habitações compactas que respeitem e revitalizem o tecido urbano, promovendo a diversidade social nas áreas centrais.
Leia mais: Restrições de zoneamento empurram população para áreas periféricas
A função pública do urbanismo deve ser garantir a coexistência harmoniosa de usos e proteger o interesse coletivo — não restringir, de forma centralizada e artificial, a forma e o tamanho da moradia de cada cidadão.
Uma política urbana baseada em liberdade, responsabilidade e pluralidade é a chave para construir cidades mais inclusivas, dinâmicas e sustentáveis — onde morar bem seja uma possibilidade real para todos, independentemente da renda. É urgente que gestores e legisladores compreendam a necessidade de revisar as normas urbanísticas e removam as barreiras que hoje impedem soluções acessíveis e inovadoras. O futuro das cidades brasileiras depende de escolhas que priorizem a liberdade de empreender, a diversidade urbana e o acesso efetivo à moradia.
Artigo originalmente publicado em Exame, em maio de 2025.
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