Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Muitas vezes os contratos entre o poder público e a concessionária não são claros e não incentivam a inovação e a melhoria dos níveis de serviço.
7 de dezembro de 2017A maioria dos municípios brasileiros concede o serviço de transporte público para uma ou mais empresas privadas. A prefeitura ou autarquia com poder equivalente planeja o sistema, ficando a cargo da concessionária operá-lo. Em teoria, esse arranjo regulatório tem a vantagem de dar à prefeitura poder sobre a oferta de transporte público, permitindo-lhe o controle do desempenho, da produção, do consumo e das externalidades por ele geradas. No entanto, na prática, muitas vezes os contratos entre o poder público e a concessionária não são claros e não incentivam a inovação e a melhoria dos níveis de serviço. São frequentes os casos de captura regulatória nos quais, ao contrário do que se espera, as empresas concessionárias acabam controlando a qualidade do sistema. Também ocorrem casos opostos, em que a própria dificuldade burocrática do poder regulador impede ajustes e inovações pelo operador concessionário.
Seja qual for o resultado da forma atual, o que se vê é um mercado fechado e altamente regulado, com pouca competição, pouco controle e com as mesmas concessionárias em operação há décadas. Os casos de concessionárias que correm o risco real de perder suas concessões por não atenderem a padrões de qualidade são tão raros quanto aqueles em que tais padrões são de fato aplicados de forma clara e efetivamente cobrados. Esse modelo gerou resultados economicamente insustentáveis às prefeituras, com o caso extremo de São Paulo, onde, apenas em 2017, se prevê o gasto de mais de 3 bilhões de reais com subsídios a empresas concessionárias de ônibus.
Existem três tipos principais de contratos para o transporte público urbano. As principais distinções entre eles relacionam-se à partilha dos riscos entre o poder público e o operador, mais precisamente os riscos associados à produção e à receita.
Nos contratos de custo bruto, o operador só tem risco de produção e é remunerado de acordo com a oferta de transporte (veículos ou lugares por quilômetro rodado). O poder público especifica as normas de qualidade do serviço e estabelece alguns limites de idade e de padrões dos veículos. Frequentemente, o poder público disponibiliza também um conjunto de infraestrutura, como terminais e garagens, de importância crítica para a operação, enquanto o operador é responsável pelo fornecimento de veículos e de pessoal e pela organização e prestação dos serviços, conforme o que foi especificado no contrato. Todas as receitas (de tarifas e outras fontes) são transferidas para o poder público, e os riscos assumidos pelo operador são os associados à produção. Em contratos de custo bruto, o operador tem pouco incentivo em prover serviço acima das especificações, inovar e atrair passageiros adicionais. Isso pode ser corrigido através de incentivos (bônus) relacionados ao aumento da demanda (medida com contagens) e da satisfação do cliente (obtida em pesquisas e inquéritos). Contratos de custo bruto são relativamente fáceis de gerir e apresentam a dificuldade de controlar o nível de produção e evitar a pressão para aumentar a oferta.
Em contratos de custo líquido, o operador tem risco de produção e de receita, que eventualmente é complementada por um subsídio por passageiro ou por passageiro por quilômetro. Como ocorre nos contratos de custo bruto, o poder público especifica as normas de qualidade de serviço, estabelece o padrão dos veículos e, frequentemente, disponibiliza a infraestrutura para a operação, enquanto o operador fornece os veículos e o pessoal, de acordo com o que foi especificado no contrato. Normalmente, o operador tem direito a todas as receitas (de tarifas e outras fontes) e a um subsídio ou prêmio relativo à demanda. O operador pode assumir alguns riscos adicionais, como perturbações na operação causadas pelo tráfego, mas isso está sempre sujeito a negociação. Nos contratos de custo líquido, o operador tende a apresentar alto nível de contencioso relacionado a qualquer fator que possa afetar sua receita, e a partilha de receitas nas viagens intermodais é fonte recorrente de disputa. Os contratos de custo líquido são os mais difíceis de gerir, com elevados riscos de litigância por diferentes causas; no entanto, incentivam o operador a inovar e atrair mais passageiros.
Nos contratos de gestão, o operador não corre nenhum desses riscos. Ele apenas traz know-how e capacidade de organização e de gestão. O poder público mantém a propriedade e o controle de terminais, garagens, infraestrutura e veículos, recebe todas as receitas e se responsabiliza por todo o capital de investimento e pelos custos. O operador só é responsável pela gestão profissional de operações em nome do poder público, normalmente por um valor mensal fixo. O poder público pode igualmente ser a entidade empregadora da maior parte ou de toda a mão de obra do sistema. Nos contratos de gestão, as motivações e os incentivos são semelhantes àqueles dos contratos de custo bruto, mas o investimento fica para o poder público. Os contratos de gestão são os mais fáceis de gerir, mas a falta de pressão para a revisão da definição do serviço traz, a médio e longo prazo, o risco de mau atendimento da população.
Independentemente da forma de contrato escolhida pelo poder público municipal, é importante rever os contratos de concessão e, caso necessário, lançar novo edital de concessões. Nesses contratos, deve ser previsto o monitoramento, no mínimo trimestral, do desempenho do serviço de transporte público por meio de indicadores de performance como taxa de ocupação, velocidade média, percentagem de veículos com ar-condicionado, percentagem de veículos adaptados aos portadores de necessidades especiais, qualidades dos pontos de ônibus, qualidade da informação disponibilizada ao público e a opinião do passageiro. Dessa forma, o poder público atua como força de mercado num espaço em que ela é ausente, visto que no sistema concessionado a concessionária não enfrenta competição no mercado (ou seja, no dia a dia das operações) mas sim pelo mercado (compete por meio dos editais de concessão pelo direito exclusivo de operar). Caso a concessionária falhe nos indicadores acordados, o poder público pode rescindir o contrato e lançar novo edital.
A reformulação das concessões deve aproveitar para redesenhar as linhas de transporte público da cidade, que em geral não refletem a demanda atual de passageiros. A partir da utilização de dados e algoritmos de otimização, atualmente é possível reorganizar a rede a partir da demanda, aumentando a eficiência de uso dos veículos e atendendo à população com maior qualidade, verificando as necessidades reais dos passageiros e eliminando as baldeações nas suas rotas.
A meta das cidades brasileiras deve ser não aumentar, mas eliminar os subsídios aos operadores de transporte público. Este, por sua vez, deve conviver com novas soluções de transporte alternativo e permitir alterações no desenho e na frequência das rotas para viabilização das suas operações. As concessões devem ser lançadas de forma transparente e aberta, de forma a receber um grande número de operadores interessados, tanto nacionais quanto internacionais.
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