Banheiros públicos: a infraestrutura oculta da confiança pública
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O controle que as organizações criminosas exercem sobre territórios informais no Brasil está ligado à configuração desses espaços e ao planejamento urbano.
3 de novembro de 2025A dinâmica da economia do crime nas grandes metrópoles brasileiras passa por uma profunda transformação. Segundo especialistas, o foco das organizações criminosas não reside mais primariamente no tráfico de drogas, mas sim na “prestação de serviços” em territórios que conseguem controlar. Esse problema — reforçado pelas últimas notícias sobre a devastadora operação do Estado do Rio de Janeiro nos bairros da Penha e do Alemão — foi apontado por Rodrigo Pimentel em sua recente apresentação “Follow the Money: economia da bandidagem cresce e aumenta a sensação de insegurança”, à qual pretendo acrescentar uma visão espacial neste artigo, com uma analogia ao trabalho do arquiteto Oscar Newman no livro “Defensible Space”.
A tese central de Oscar Newman é que o desenho físico pode reforçar a capacidade de moradores exercerem controle informal e positivo sobre o espaço. Na maioria dos assentamentos informais brasileiros, algumas qualidades físicas acabam sendo apropriadas por grupos criminosos, que passam a exercer eles próprios a territorialidade e a vigilância. Abaixo, as características que, sob a ótica de Newman, tendem a favorecer esse domínio:
• Morfologia labiríntica e baixa legibilidade;
• Múltiplos pontos de acesso e alta permeabilidade espacial;
• Topografia acidentada com posições dominantes;
• Ambiguidade de domínio entre público, semipúblico e privado;
• Densidade por acesso muito alta;
• Rupturas na “vigilância natural” positiva;
• Cul-de-sac, becos sem saída e gargalos;
• Acessibilidade veicular limitada e controle de fluxos;
• Tramas construtivas irregulares e verticalização adensada;
• Interfaces com áreas de difícil fiscalização;
• Sinalização, endereçamento e numeração precários;
• Estigma e baixa presença institucional;
• Usos do solo concentrados e horários “vazios”.
Como essas características se convertem em mecanismos de controle?

Os territórios controlados pelo crime funcionam como verdadeiras “reservas de mercado” cativas, onde a população local, muitas vezes sem alternativas, fica à mercê das regras impostas por esses grupos. Isso se dá no fornecimento irregular de energia (os gatos), no sinal de internet, nos botijões de gás, no pão francês, no gelo, no transporte alternativo, no cigarro paraguaio, na proteção ao comércio local, entre outros elementos passíveis de serem fornecidos de forma monopolística. O alto volume das transações financeiras resultantes dessas economias ilegais exige sua “lavagem” através do sistema financeiro, indicando a necessidade inadiável de combater essa dinâmica e desarticular essas reservas de mercado criminosas.
Leia mais: Cidades sob regras paralelas: o urbanismo nas áreas de facção
A questão central é: por que esses grupos conseguem controlar esses territórios de forma tão eficaz? A resposta é clara: são territórios defensáveis. Essa defensibilidade, arquitetônica e urbanisticamente, pode ser analisada sob qualquer princípio do CPTED (Crime Prevention Through Environmental Design), que estuda como o design do ambiente pode influenciar o comportamento criminoso. Ruas estreitas e labirínticas, habitações adensadas e empilhadas, ausência de endereços formais e a precariedade ou ausência de serviços públicos básicos — como água, energia, esgoto, e transporte público decente — criam um cenário ideal para o controle territorial por grupos armados (como um dia foram as cidades medievais, com suas barricadas, seteiras, valas e armadilhas). Essas características dificultam o acesso e a vigilância pelas forças de segurança do Estado, favorecem o esconderijo e o uso da população como escudo, ao mesmo tempo em que facilitam a observação e a imposição de regras pelos grupos que dominam.

Paradoxalmente, a legislação urbana vigente no Brasil frequentemente favorece (e até estimula) a formação de territórios informais onde as leis urbanísticas formais se tornam inoperantes. Isso ocorre porque uma vasta parcela da população simplesmente não pode arcar com os custos do “urbanismo legal” – seja o preço do solo, os padrões construtivos ou as taxas. No município de São Paulo, por exemplo, o IBGE aponta que 1,7 milhões de pessoas vivem em áreas informais, um número maior que toda a população da cidade de Porto Alegre ou de Recife. Essas áreas são construídas sob o critério do menor custo possível, resultando em condições precárias que, ironicamente, criam um ambiente propício para a consolidação do poder paralelo.
Diante desse cenário, é imperativo transcender o debate de “soluções” urbanísticas difusas e paliativas. Precisamos nos concentrar no que realmente interessa, que é como o urbanismo pode e deve contribuir para a redução da criminalidade, impactando toda a cidade. É preciso:
Leia mais: Combatendo o crime sem policiais: o papel fundamental do espaço urbano
Os alertas são cada vez mais evidentes. A economia do crime cresce, sofisticando-se e aprofundando a sensação de insegurança. É fundamental que as políticas urbanas (e nossos legisladores) reconheçam o papel crítico da formalização e da integração territorial como estratégias centrais de segurança pública, civilidade e desenvolvimento sustentável. Não há sustentabilidade possível na atual situação.
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