Fila ou preço? Como o pedágio urbano pode acabar com os congestionamentos de trânsito
Quando todos perdem tempo, alguém precisa repensar o sistema.
Na tentativa de proteger as crianças, mantendo-as dentro dos muros e dos carros, acabamos prejudicando o seu próprio desenvolvimento e contribuindo para o abandono dos espaços públicos nas cidades.
12 de junho de 2025Imagine uma criança que nasce e cresce em um condomínio que tem uma área aberta e um espaço kids. Para programas fora de casa, ela vai para a escola, para o clube, para o shopping ou para a casa de outros amigos. Locais em que os contatos raramente são com pessoas de origens muito diferentes da sua própria. Locais em que qualquer risco é levado ao mínimo.
O seu transporte é exclusivamente de carro, com os pais, avós ou até algum motorista. A criança sai de uma garagem para outra, nunca tendo contato com a rua, a calçada, praças ou qualquer espaço público. “Ainda é muito cedo, é muito perigoso”, pensam os pais e, por comodidade, o tempo vai passando.
Chega a adolescência. Diferente da época de seus pais, não é mais necessário pegar lotação, ônibus ou andar a pé. Existe algo chamado Uber, com contas especiais para adolescentes. Problema resolvido. “Ainda é muito cedo.”
18 anos. O já jovem adulto segue usando Uber ou, nas famílias que têm melhores condições, começa a dirigir. O que se tornou hábito, agora é difícil mudar. O que se vê agora é um adulto que nunca teve qualquer contato com o mundo fora do carro e dos espaços fechados. Que nunca teve contato com o diferente. Que nunca se perdeu. Que nunca precisou pedir ajuda a um estranho.
Essa é uma hipótese exagerada, mas não muito distante da realidade da classe média e alta no Brasil hoje.
E podemos fazer algumas perguntas sobre o desenvolvimento dessa criança:
O psicólogo Jonathan Haidt, autor do best-seller “A geração ansiosa”, alerta sobre como o medo dos perigos da cidade gerou um enclausuramento de crianças em ambientes controlados que afetou o desenvolvimento da autonomia. Segundo ele, as crianças precisam de lugares em sua comunidade, além da casa e da escola, onde elas possam interagir e realizar atividades de forma autônoma. Esses lugares podem ser praças, parques ou até mesmo as ruas.
Nas últimas décadas, construímos nossas cidades para ignorar o espaço público. Olhe para as ruas ao nosso redor: quem passa pela calçada tem como “grande atrativo” um paredão fechado de cercas e muros dos prédios. Se olharmos não só para cidades emblemáticas, de Barcelona a Nova York, mas também para os centros históricos das cidades brasileiras, encontramos uma realidade bem diferente, em que usos diversos se conectam com o espaço público com fachadas contínuas junto às calçadas.


Isso é resultado de uma falha de coordenação: cada edifício atuando de forma isolada, sem um direcionamento adequado, seja por instituições privadas ou pelo poder público. Assim, se gasta muito mais construindo suas próprias fortalezas do que poderiam gastar atuando em conjunto, criando mecanismos mais efetivos para a segurança do bairro ou da cidade.
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A negligência geral com os espaços públicos também é resultado das pequenas decisões que tomamos todos os dias. Entre deixar o filho adolescente a algumas quadras da escola ou perpetuar práticas de “drive thru” de crianças até para os jovens do ensino médio, muitas vezes a segunda opção é a escolhida.
Em um ciclo vicioso, afastamos as pessoas do espaço público. Estes, abandonados, geram cada vez mais desconfiança em utilizá-los, assim como falta de cuidado e investimento.
Jane Jacobs, uma das maiores pensadoras sobre a vida nas cidades, dizia que as cidades deveriam ter “olhos na rua”. Ela se referia aos olhos dos proprietários naturais da rua, não no sentido de serem donos, mas de terem observação e cuidado constantes, sendo elos fortes da comunidade. Eles não são, necessariamente, pessoas trabalhando para essa finalidade, como vigilantes ou policiais. Podem ser os comerciantes da região, moradores que saem para passear com seus cachorros ou mesmo o pipoqueiro de confiança da praça.
Em 1996, no livro “The Lost City”, Alan Ehrenhalt relata como nos distanciamos dessa realidade: “Nos anos 1950, os moradores consideravam as ruas como suas casas, uma extensão de suas propriedades, enquanto hoje as ruas são, para muitas pessoas, um lugar desconhecido. Um quarteirão já não é mais uma comunidade nesse bairro. Só a casa em si é uma comunidade — um pequeno reduto dependente da televisão e do ar-condicionado e acessível a outros redutos semelhantes, mesmo os mais próximos, quase exclusivamente por automóvel.”
A ideia desses “pequenos redutos” acessíveis por automóvel foi retratada na ilustração de Nicole Rossi para o Caos Planejado no que chamamos de “cidade das caixinhas”. A provocação parte do imaginário infantil para denunciar a falta de integração entre espaços públicos e privados nas cidades, que reforça o ciclo de isolamento e prejudica o cotidiano das crianças.

Se queremos morar em uma cidade em que podemos caminhar na rua com nossas crianças, levá-las para a escola a pé ou de bicicleta, se temos cidades de excelência como nossa ambição e se queremos criar futuros adultos independentes e que exerçam a cidadania, não podemos ser coniventes ou coadjuvantes com medidas que levem nossas cidades no sentido oposto.
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Devemos, na verdade, pensar em formas de utilizar, ocupar e absorver os espaços públicos no nosso dia a dia. E pensar também em formas de facilitar, com segurança, a circulação de crianças e jovens nos acessos das escolas, talvez utilizando praças e calçadas como pontos de encontro. Precisamos reaproximar as crianças das cidades, para o bem de ambas.
Durante décadas, o planejamento das cidades brasileiras contribuiu para a valorização do automóvel individual e o descaso com os espaços públicos. Isso prejudica não só as crianças, mas todas as pessoas. Confira o curso “Do Planejamento ao Caos” para entender mais sobre os erros do urbanismo brasileiro e como podemos melhorar.
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sem falar na falta de praça no bairro. quando se precisa de carro ou onibus para ir até uma simples praça, é um grande problema
e essa grita por “escola em tempo integral” pra adolescente é grosso modo para privá-los de usar a cidade livremente – e é sempre para adolescentes pobres: os adolescentes de classe média pra cima se espera que usem a cidade livremente, e ainda bem.
(eu sou um illichiano puro sangue e um jacobsiano radical, um jesuíta devoto de São Sepé Tiaraju).
eu moro perto da escola dos meus filhos, mas cada caminhada é uma aventura: degraus altos, buracos, lixo, mato, piso liso, e até mureta, pasmem, deixam a caminhada bem chata, desconfortável e até perigosa em alguns momentos.