Mitigação das enchentes: desafios na conclusão de obras públicas
Foto: DNIT

Mitigação das enchentes: desafios na conclusão de obras públicas

Nos últimos anos, os efeitos das fortes chuvas têm sido uma fonte constante de apreensão para a população brasileira, por serem cada vez mais frequentes. Por que implantar soluções efetivas contra as enchentes no Brasil parece ser tão difícil?

17 de abril de 2025

O planejamento urbano é uma área onde existem muitos desafios complexos, onde se buscam soluções para a otimização e o desenvolvimento sustentável das cidades. Para quem vive em regiões frequentemente afetadas pelas chuvas, é constante a preocupação sobre a construção de soluções que possam mitigar essas consequências.  

Alagamentos. Deslizamentos. Soterramento. Doenças causadas pelo contato com água contaminada como a cólera, hepatite e leptospirose. Dezenas ou centenas de mortos. Interrupção de serviços básicos como o fornecimento de água potável e energia elétrica. Quantas vezes essas palavras ou frases têm sido parte do nosso cotidiano?

A prevenção das consequências causadas pelas chuvas exige ações em diversas frentes. O Poder Público tem anunciado investimentos de bilhões de reais para tentar frear a ação das chuvas, direcionando recursos para ações como contenções de encostas e a construção de unidades habitacionais em regiões seguras.

Leia mais: Moradia digna e direito à cidade antes e depois de desastres naturais

Então, por que a cada ano a situação parece se agravar ainda mais? Na prática, verificam-se diversos desafios e entraves na obtenção de um resultado efetivo, especialmente em relação à demora na conclusão de obras públicas. Além disso, o aquecimento global está tornando cada vez mais intensa a ocorrência de chuvas torrenciais. Cita-se o Estado do Rio Grande do Sul, que em 2024 foi atingido por uma tragédia ambiental de magnitude jamais vista, ocasionada pela chuva que atingiu 298 dos 497 municípios gaúchos, causando mais de 180 mortes, segundo o MapBiomas, rede colaborativa composta por ONGs, universidades, laboratórios e startups de tecnologia. 

Alagamentos em Eldorado do Sul, em 2024. Foto: Bruno Peres/Agência Brasil

Um dos primeiros pontos a ser levantado é a dificuldade em realizar a desocupação de imóveis em áreas de risco, que é em muitos casos a primeira etapa necessária para o início de uma obra. Uma grande parcela da população se recusa a deixar suas moradias, colocando sua vida e integridade em risco. O problema é exponencial. Segundo dados de levantamentos divulgados em novembro de 2024 pelo MapBiomas, desde 1985, a ocupação das áreas de encostas, mais suscetíveis a deslizamentos, teve um aumento de 3,3% ao ano, sendo que 70% dessa ocupação aconteceu a partir desse período.

Em outro levantamento do MapBiomas, de outubro de 2023, destaca-se que uma grande fatia da ocupação de risco encontra-se nos locais mais carentes de recursos, como as favelas. Em 2022, 3% da área urbana total estava em regiões de risco, considerando uma média nacional. Nas favelas, esse percentual chegou a 18%.

Logo, remover uma grande quantidade de pessoas dessas áreas se torna uma questão complexa, que por muitas vezes acaba por ser levada ao Poder Judiciário. A tramitação da ação e a consequente desocupação pode durar anos, pois são necessários planos ou ações para realocação dessas famílias, como a disponibilização de moradias ou pagamento de aluguel social.

Mas esse é apenas um dos problemas. Para a conclusão de uma obra pública, há muitos desafios a serem vencidos. Em 2024, o Tribunal de Contas da União (TCU) identificou 11.941 obras paralisadas no país, o que corresponde a 52% das contratações vigentes. Nesse cenário, a cada dois empreendimentos contratados com recursos federais, um se encontra paralisado.

Em 2023, um levantamento realizado pela Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC) apontou como algumas das principais causas da paralisação de obras no Brasil: a baixa qualidade técnica dos estudos e projetos, a não execução contratual pelo contratado e problemas no fluxo orçamentário e financeiro para viabilizar os contratos.

Muitas vezes, as obras necessárias são de extrema complexidade, o que também dificulta a sua implementação. Mencionando novamente as enchentes históricas do Rio Grande do Sul em 2024, a cidade de Eldorado do Sul foi a mais atingida no território gaúcho, tendo 100% de sua área urbana atingida pela água. Segundo dados do Ministério das Cidades, em 2012 foi autorizada pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) a elaboração de estudos e projetos de engenharia para prevenção e combate às inundações no Rio Jacuí, em Eldorado do Sul. Na ocasião das enchentes, após 12 anos, os projetos básicos ainda não tinham sido concluídos. 

Após as enchentes, o Estado do Rio Grande do Sul criou o Plano Rio Grande – Programa de Reconstrução, Adaptação e Resiliência Climática do Rio Grande do Sul, que propõe medidas para atenuar os impactos causados pelas enchentes que assolaram o Estado em 2024. Esse plano representa um grande avanço, visto que concentra ações para evitar que uma nova tragédia ocorra, apesar de reconhecermos a magnitude e a dificuldade da implementação de tantas ações necessárias. Conforme informações disponíveis no site do Plano Rio Grande, é prevista para o primeiro semestre de 2025 a contratação da revisão dos anteprojetos para prevenção e combate às inundações no Rio Jacuí, em Eldorado do Sul, dando condições seguras para avançar com a licitação integrada de projetos e obras. 

Conforme dados disponibilizados pelo Ministério das Cidades, para a contenção do Rio Jacuí são previstos investimentos de R$ 447.514.994,61 através do PAC SELEÇÕES, compreendendo a construção de dique em muro de flexão, de aterro em argila, implantação de duas casas de bombas de drenagem e rede de macrodrenagem (galerias e canais abertos de drenagem), bem como de dois canais de descargas e três drenos coletores.

Rua alagada pela enchente de 2024 em Eldorado do Sul. Foto: Bruno Peres/Agência Brasil

Como se verifica, a obra para garantir um sistema eficiente contra enchentes em Eldorado do Sul é de grande monta e complexidade. É apenas uma de muitíssimas obras necessárias em todo o território brasileiro para a contenção das enchentes. É necessário se pensar em soluções para diminuir a média de mais da metade das obras paralisadas no Brasil. Aprimorar a legislação, melhorar a qualidade dos projetos técnicos, intensificar a fiscalização dos contratos de obras, bem como aumentar a utilização de solução consensual de controvérsias parecem ser bons caminhos a serem seguidos para garantir uma conclusão efetiva e eficiente de uma obra pública.

Um avanço legislativo após a tragédia climática no Rio Grande do Sul foi a publicação da Lei Federal nº 14.981, que dispõe sobre medidas excepcionais para a aquisição de bens e a contratação de obras e de serviços, inclusive de engenharia, destinados ao enfrentamento de impactos decorrentes de estado de calamidade pública. Alguns dos avanços dessa lei permitem que os prazos mínimos para fornecedores apresentarem lances e propostas que constam na Lei de Licitações e Contratos sejam reduzidos pela metade. Ela facilita os procedimentos na fase preparatória de contratações, dispensando estudos técnicos preliminares e permitindo apresentação de documentos simplificados, e flexibiliza as exigências de apresentação de documentos de regularidades fiscal e econômico-financeira quando há poucos fornecedores ou prestadores de serviços disponíveis.

Leia mais: A solução para as enchentes não é inviabilizar a cidade

Melhorar a qualidade dos projetos evita que surja um desafio inesperado ou o custo da obra seja subestimado. Intensificar a fiscalização dos contratos também identifica os problemas mais rapidamente, para que consequentemente se trabalhe mais rápido em sua resolução. A solução consensual de controvérsias, como a mediação, negociação, conciliação e arbitragem, evita que as demandas sejam levadas ao Poder Judiciário, resolvendo em pouco tempo uma disputa que poderia se prolongar por anos. 

Assim, talvez em breve, quando a água cair do céu, não nos preocuparemos se o nível dela vai subir e se estaremos em um local seguro, com nossa integridade e nossas vidas protegidas. Talvez apenas possamos não ter medo da chuva. 

Daniela Nadia Wasilewski Rodrigues possui graduação em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (2006) e em Gestão Estratégica das Organizações com ênfase em Direito Público pela Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL. É pós-graduada em Administração Tributária, em Direito Administrativo e Gestão Pública e em Direito Notarial. Atualmente é Auditora-Fiscal da Receita Estadual do Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Ex-servidora da Justiça Federal e ex-funcionária da Caixa Econômica Federal, tendo atuado na área de habitação e fomento. Tem aproximadamente 20 anos de experiência na área de Direito, em especial na área de Direito Público.

Este artigo recebeu menção honrosa no Concurso de Artigos do Caos Planejado, realizado em fevereiro de 2025.

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