Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
A pesquisa em Belo Horizonte mostra que muitas resistências comuns às ciclovias são, na verdade, equivocadas e sem fundamento.
28 de outubro de 2024Anteriormente, escrevi um texto rebatendo os principais argumentos contrários à ciclovia da Afonso Pena, os quais costumam se repetir em qualquer cidade com políticas de mobilidade centradas nos automóveis.
De lá para cá, pouca coisa mudou. Devido à forte oposição de diferentes setores da sociedade, a obra foi suspensa temporariamente pela Justiça. Se a decisão final do tribunal for favorável à ciclovia, resta ainda saber se o próximo prefeito irá se comprometer a dar continuidade ao projeto.
Nesse período, a obra da ciclovia chegou a ser executada por 500 metros dos 4,2 km previstos. Esse pequeno trecho de ciclovia compromete menos de 2% do espaço atualmente destinado aos automóveis e é o único trecho com previsão de supressão de faixa de rolamento para os automóveis, pois, no resto da avenida, a ciclovia será em cima do canteiro central.
O interessante é que, mesmo com apenas 12% de extensão da ciclovia concluída, já temos alguns valorosos ensinamentos.
Leia mais: Por que ciclistas ignoram trecho de ciclovia em Belo Horizonte?
Sem dúvida, a fonte mais poderosa de resistência às ciclovias no geral reside no medo de que essas estruturas possam retirar espaço dos carros e atrapalhar o trânsito.
Na discussão da ciclovia da Afonso Pena esse sentimento também esteve presente, mas estudos realizados antes e depois do começo da obra comprovam que uma vez mais esse tipo de preocupação não tinha fundamento.
Entre fevereiro e agosto de 2024, em diferentes dias, usei câmeras de segurança para registrar de forma ininterrupta o trânsito no local. Foram mais de 130 horas de vídeos gravados do alto de um apartamento com visão abrangente da avenida.
Parte desse material foi publicado nas redes sociais e recentemente entramos com uma ação de Amicus Curiae disponibilizando todo o material para o tribunal que aprecia a questão.
Importante destacar que esses resultados corroboram estudos anteriores feito pela empresa Fratar de engenharia consultiva, a pedido da prefeitura. No ano de 2019, a empresa realizou contagem de veículos em vários pontos da avenida. O gráfico abaixo mostra o fluxo de veículos, por quarteirão, identificado no pico da tarde de 17:00h às 18:00h.
O único trecho com supressão de faixa é, de longe, o com menor fluxo de veículos em toda a avenida. Ele atinge um fluxo máximo de 1.113 veículos por hora em toda a pista no sentido bairro-centro ou 556 veículos/faixa/hora, caso consideremos as duas faixas remanescentes.
Conforme o estudo da Fratar, para uma via arterial (que é o caso da Afonso Pena), o fluxo de saturação por faixa é perto de 1.800 autos/h e a capacidade de passagem nos semáforos nesse trecho é acima de 2.000 autos/h. Isso significa que o fluxo de veículos poderia triplicar, que ainda assim as 2 faixas restantes atenderiam a contento a demanda.
Leia mais: As ciclovias são culpadas pelo congestionamento urbano?
Geralmente, a oferta de uma infraestrutura de mobilidade antecede sua demanda. Por exemplo, aviões não decolam sem aeroporto, nem carros atravessam rios sem que existam pontes ou balsas.
Portanto, a demanda pelo uso de uma ciclovia ganha impulso depois que ela é construída. Antes disso, a demanda é apenas potencial e aqueles que pedalam no meio da rua o fazem por estarem mais adaptados às adversidades das vias ou simplesmente porque não têm escolha.
Dito isso, as mesmas câmeras de segurança que provaram a inexistência de trânsito caótico por culpa da ciclovia também nos deram uma noção da demanda potencial da ciclovia.
Na Afonso Pena, registrei uma média de 131 viagens de bicicleta por dia em um pequeno segmento da parte alta da avenida e 400 em outro segmento na parte baixa, os quais estão destacados de vermelho na imagem abaixo:
É razoável supor que não são todas as bicicletas que percorrem os 4,2 km de extensão da avenida. Por exemplo, algumas bicicletas podem ter ido de A para B, de B para A, de C até D, e assim por diante, de forma que essas viagens de bicicleta não foram registradas pelas câmeras usadas na contagem.
Apesar de não ser possível fazer uma estimativa precisa, se imaginarmos, por exemplo, que metade das viagens ao longo de toda a avenida não passam pelos pontos de contagem, o total atual de viagens em toda a sua extensão poderia chegar a aproximadamente mil.
Obviamente, caso a ciclovia venha a ser feita, é esperado que a demanda pelo uso da bicicleta aumente. A avenida Augusto de Lima, também em Belo Horizonte, localizada em um bairro próximo da Afonso Pena, teve o número de viagens de bicicleta aferidas antes, durante e após a construção de uma ciclovia de 2 km no local. Os resultados indicam que um ano após a conclusão dessa ciclovia (e da chegada das bicicletas compartilhadas), o número de viagens de bicicleta quase triplicou.
Portanto, na hipótese de que um fenômeno parecido com esse se repita na Afonso Pena, o número de viagens de bicicleta pode vir a ser muito maior. Vale lembrar que a Afonso Pena é mais extensa, central e liga um maior número de bairros.
Esses primeiros apontamentos referem-se apenas ao impacto do primeiro ano da ciclovia e não levam em conta o efeito sistêmico de uma rede cicloviária maior e com mais pontos de interligação, os quais poderiam impulsionar ainda mais o uso da bicicleta em Belo Horizonte ou em qualquer cidade que venha a receber esse tipo de infraestrutura.
As filmagens que realizei na Afonso Pena também ajudam a demonstrar que os estacionamentos em vias públicas são uma forma ineficiente de ocupar o espaço urbano (principalmente quando não se cobra preço de mercado pelo espaço).
Em termos de locomoção, uma vaga de estacionamento não beneficia ninguém, pois ela impede a passagem de qualquer pessoa ou veículo. Além disso, todo carro que vai estacionar tende a reter o trânsito na faixa contígua, especialmente quando é preciso realizar uma baliza.
Se não bastasse, pesquisas relacionadas por Donald Shoup indicam que 30% dos veículos que circulam em locais em que não se cobra um preço de mercado pelas vagas estão circulando à procura do “almoço grátis” da vaga pública, colaborando para saturar o trânsito de forma desnecessária.
Deve-se ressaltar que a vaga de estacionamento é apenas uma comodidade ofertada aos donos de veículos, um subsídio do Estado para uma parcela da sociedade ter o privilégio de usar o escasso espaço público em detrimento de outros usos.
Os estacionamentos também costumam perder no quesito de pessoas beneficiadas. Geralmente, a rotatividade dos estacionamentos em via pública é baixa, especialmente quando não existe cobrança, ou quando ela é de baixo valor ou a fiscalização e as multas não são efetivas.
As imagens que registrei na Afonso Pena também ajudam a comprovar esse último ponto. Na segunda-feira, dia 10 de junho de 2024, das 07h até meia noite, comparei o número de ciclistas que passaram na ciclovia com o número de carros que estacionaram no lado direito da pista. O resultado foram 71 viagens de bicicleta contra 56 carros que estacionaram no local ao longo do dia.
Observei ainda que a rotatividade de carros estacionados é baixa e a média de tempo que os veículos ficam estacionados tende a ser próxima do limite estabelecido pelo Faixa Azul.
A partir dessas informações, estimei que o número de carros estacionados ao longo do dia no pequeno trecho com ciclovia dificilmente passava de 200. Se isso já é menos que a quantidade atual de viagens de bicicleta registradas na avenida, a diferença será ainda maior para o número potencial de viagens após a sua conclusão.
Toda vez que cidades centradas nos automóveis tentam oferecer novas opções de mobilidade, importantes parcelas da sociedade se mobilizam para tentar impedir. Foi o que ocorreu no caso da ciclovia da Afonso Pena, onde transformaram 500 m de ciclovia em campo de batalha, sob a acusação de que ela atrapalharia o trânsito e atenderia número pequeno de pessoas.
Entretanto, registros em vídeo comprovam que estes argumentos não se sustentam. A ciclovia da Afonso Pena compromete menos de 2% do espaço destinado aos automóveis, e mais de 130h de vídeo comprovam que o trânsito continua fluindo normalmente no local.
Leia mais: Sistema cicloviário brasileiro apresenta um cenário de desigualdade e ineficiência
Apesar de contraintuitivo, ciclovias tendem a melhorar o trânsito, pois contribuem para o fenômeno da evaporação do tráfego e permitem que algumas pessoas optem pela mobilidade ativa, induzindo a demanda por bicicleta/patinetes/monociclos, o que ajuda a retirar carros da rua.
Na Afonso Pena é possível que isso já esteja ocorrendo, pois, com somente 12% da obra concluída, já se observa um fluxo razoável de ciclistas na ciclovia e um número ainda mais expressivo no restante da avenida.
Estimativas apontam que, se a ciclovia fosse finalizada, poderia beneficiar um número muito maior de ciclistas do que o de veículos estacionados no único trecho em que a ciclovia suprime uma faixa.
Estes números reforçam a perspectiva, já bem aceita entre especialistas, de que toda ciclovia tem potencial de atender muito mais gente do que os automóveis, especialmente quando estacionados. E com um objetivo muito mais nobre: preservar vidas humanas, oferecer conforto, segurança, sustentabilidade e um ambiente urbano mais agradável.
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