Podcast #108 | Ruas para Crianças e a Global Designing Cities Initiative
Confira nossa conversa com a urbanista Eduarda Aun sobre a Global Designing Cities Initiative (GDCI) e como desenhar cidades para crianças.
Joinville tem se destacado, há décadas, por um alto uso das bicicletas nos deslocamentos da população.
30 de setembro de 2024A bicicleta chegou a Joinville há cerca de 100 anos, no período entreguerras. Foi trazida primeiro na bagagem, por imigrantes, e logo foi importada em massa por empresas locais. Favorecida pela topografia plana, a bicicleta se tornou, em pouco tempo, a principal solução de mobilidade, sendo adotada pela maioria da população, conforme demonstram as contagens de tráfego desenvolvidas pela Serete Engenharia em 1972, para o desenvolvimento do Plano Diretor.
Dois ensaios publicados na primeira edição da revista “Joinville Universitária”, publicada pela Faculdade de Engenharia de Joinville também em 1972, destacam a importância da bicicleta na vida da cidade. Adolfo Bernardo Schneider, historiador, e Carlos Adauto Vieira, ensaísta, ambos sem formação em urbanismo, atribuíram à bicicleta a expansão territorial da cidade. Segundo eles, a adoção desse modal foi crucial para a transição de Joinville de uma colônia rural, onde as famílias viviam em pequenas fazendas, para uma configuração urbana, com lotes urbanizados e empregos na indústria. Também destacaram que a bicicleta estabeleceu novos parâmetros de distância, redefinindo “perto” como qualquer lugar acessível com facilidade de bicicleta.
A simplicidade e praticidade da bicicleta permitiram a redução gradativa do tamanho dos lotes, substituindo carroças e charretes e eliminando a necessidade de áreas de pasto e estábulos para animais de tração. Os autores identificaram ainda, na ampla utilização da bicicleta pela população, uma representação local do “Great American Dream”, simbolizando o anseio pela liberdade individual ao alcance de todos.
Os autores encerraram seus artigos com uma pergunta sobre o futuro: será que a bicicleta seria capaz de resistir ao avanço da motorização?
Cinquenta anos após essa publicação, podemos responder a essa indagação, pois a parte mais recente dessa história eu mesmo testemunhei, como observador participante.
A ampla utilização da bicicleta pela população de Joinville levou à adoção de soluções urbanísticas pioneiras no país. A cidade foi uma das primeiras no Brasil a implantar ciclovias segregadas e, em 1979, construiu a primeira ponte com ciclovia do país, a Ponte do Trabalhador. Com sua ampla ciclovia, ela conectava a região popularmente conhecida como “bairrão” à Fundição Tupy, a maior unidade fabril da cidade à época.
A troca de turno da Tupy era um espetáculo à parte, com milhares de operários de macacão azul saindo simultaneamente, pedalando suas bicicletas “raiz”.
Com faróis a dínamo, motores auxiliares a combustão ou bateria, capas de chuva, alforjes e bagageiros de todos os tipos, os habilidosos artífices de Joinville adaptaram suas bicicletas às condições meteorológicas e aos mais diversos usos. Carinhosamente chamada de “zica”, a bicicleta era o equivalente, na época, ao que hoje seria um “Uno com escada no teto”. Levava as crianças à escola, a mulher ao comércio, a família toda ao passeio de domingo.
A bicicleta permitia até pequenas viagens, seja para visitar parentes em fazendas distantes ou para banhos de rio junto às pontes cobertas. Servia para carregar lenha e também para transportar botijões de gás. Era o brinquedo favorito das crianças e, empinada por longas distâncias, atendia às necessidades adolescentes de autoafirmação diante dos amigos e namoradas. Sim, era possível namorar de bicicleta, levando a pessoa querida no guidão, na garupa, ou melhor ainda, no canote, entre o banco e o guidão, bem abraçada.
No entanto, a bicicleta enfrentou ataques e ameaças constantes. O automóvel, ganancioso, ocupou cada cantinho das ruas, seja para circular, seja para estacionar. Nessa disputa, os atropelamentos de ciclistas tornaram-se frequentes. Além disso, a introdução do vale-transporte, no final dos anos 1980, retirou do trabalhador a vantagem econômica de se deslocar de bicicleta para o emprego, promovendo o uso do transporte coletivo e dos fretamentos.
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A cidade continuou a crescer e a se expandir, aumentando as distâncias a serem percorridas. A implantação do novo distrito industrial na zona norte, no final dos anos 1970, levou as grandes indústrias para longe do “bairrão”, dificultando o acesso dos ciclistas. A chegada da televisão e de novos padrões de consumo também contribuiu para o preconceito contra a bicicleta e seus usuários, vista como o veículo do pobre e do operário.
Com isso, a bicicleta foi perdendo gradualmente seu protagonismo em Joinville. Restaram-lhe apenas suas qualidades intrínsecas: prática, barata e econômica, continuava a oferecer a liberdade individual de deslocamento.
Felizmente, a história não parou por aí. A partir dos anos 1990, com o surgimento da consciência ambiental, o crescimento dos movimentos sociais e o amadurecimento da sociedade brasileira, a bicicleta passou a ser vista com novos olhos. Especialistas em questões urbanas reconheceram-na como uma solução eficaz para os problemas de mobilidade, promovendo-a como um modal a ser integrado aos sistemas de transporte urbanos, por ser ambientalmente correto e socialmente justo. Paralelamente, a bicicleta ganhou destaque como ferramenta para melhorar a saúde e a qualidade de vida, sendo adotada pela “geração saúde” tanto como veículo esportivo quanto como opção de lazer.
No planejamento urbano de Joinville, iniciou-se uma verdadeira guerrilha em prol da bicicleta. Urbanistas do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano (atual Secretaria de Pesquisa e Planejamento Urbano) passaram a desenhar ciclovias em todos os novos projetos viários e a substituir vagas de estacionamento por ciclofaixas nas requalificações de vias. Embora nem todos os projetos tenham sido implantados conforme o planejado, enfrentando resistências internas e da comunidade, cerca de 370 km de ciclovias, ciclofaixas e ciclorrotas foram construídos a partir de 1997.
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Hoje, Joinville conta com mais de 60 km de ciclovias por cada 100 mil habitantes, posicionando-se entre as maiores redes cicloviárias do hemisfério sul, conforme atestado pela plataforma Bright Cities.
Projetos como os Passeios Públicos, que urbanizam regiões precárias da cidade enfatizando os modais ativos de deslocamento, têm recebido prêmios de urbanismo e de cidades inteligentes. As preocupações globais com as mudanças climáticas e a necessidade de se reduzir as emissões de carbono consagraram a bicicleta como o modal de mobilidade a ser mais incentivado. Joinville, mesmo enfrentando os desafios do rodoviarismo, conseguiu preservar o uso da bicicleta como um meio de transporte muito popular, com cerca de 12% de todos os deslocamentos diários, continuando assim a fazer jus ao seu título de “Cidade das Bicicletas”.
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