O que o Parque Ibirapuera em São Paulo tem a ver com o Nobel de Economia?
Na perspectiva do desenvolvimento econômico, vemos que alguns aspectos da configuração urbana de São Paulo são excludentes.
As intervenções em assentamentos precários em bairros de maior e menor renda mostram que a política pública se dá de maneira distinta. Cabe questionarmos: o que leva a esse cenário? Quais forças devem influenciar a decisão de se urbanizar favelas em certos bairros e não em outros?
29 de agosto de 2024Feche os olhos e imagine. Primeiro, vamos resgatar uma lógica cruel e conhecida. Se o governo constrói um parque ou uma estação de metrô perto de um imóvel, ele costuma se valorizar. Se, por outro lado, a propriedade fica próxima a favelas e outros assentamentos de baixa renda, ela se desvaloriza. Embutida nessa lógica estão premissas comuns no mercado imobiliário e entre grupos de compradores e locadores, que muitas vezes veem a pobreza urbana como sinônimo de degradação e perigo.
Agora imagine uma favela com mais de 3.500 moradores no meio de um bairro de alta renda. O assentamento, aos olhos de muitos, desvaloriza as torres de apartamentos da região. Mas uma proposta começa a ser aventada: e se essa favela fosse removida e, no lugar, condomínios residenciais fossem erguidos do zero? A pergunta que se segue é: o metro quadrado das torres de alto padrão ficaria mais caro?
Abra os olhos e… depare-se com a Favela Real Parque, nas proximidades da Ponte Estaiada, cartão-postal paulistano. Nesse assentamento, a imaginação virou realidade. A partir de 2010, todos os 1.110 domicílios foram demolidos e apartamentos novos em folha foram ofertados às famílias, todos conectados à rede de saneamento, gás e energia elétrica.
Agora feche os olhos mais uma vez e pense em uma favela maior, com mais de 2.300 domicílios – mais de 7.500 residentes – em um bairro periférico e de renda média não muito longe dali. Esse assentamento também é alvo de estigmas e seus moradores certamente mereceriam morar melhor, quem sabe em apartamentos novos e munidos das mesmas redes de infraestrutura e de serviços essenciais que o Real Parque – a título de ilustração, em 2008, 84,8% dos domicílios no Sapé descartavam seu esgoto no córrego que corta o assentamento.
Ocorre que, ao abrir os olhos e observar a Favela do Sapé, no Rio Pequeno, Zona Oeste de São Paulo, você vê obras mais modestas, que não deram conta de substituir todas as casas. Faltou dinheiro, explicou uma arquiteta da Secretaria de Habitação, órgão que atualmente costuma consolidar favelas ao invés de remover assentamentos inteiros e construir unidades habitacionais novas para todos os removidos.
Você pode se perguntar: por que o Real Parque foi urbanizado de um jeito, e o Sapé, de outro? Muitas são as prováveis explicações. Dados coletados e analisados na minha dissertação de mestrado “Urbanizando favelas: esquemas de financiamento e seus efeitos sobre oportunidades econômicas, provisão de infraestrutura e segurança”, apresentada em 2019 à Universidade de Columbia e que baliza este artigo, apontam para ao menos três fatores.
Em primeiro, pode-se supor que bairros de alta renda – como o Real Parque – exerçam maior influência do que vizinhanças de menor renda – como o Rio Pequeno – nas tomadas de certas decisões de gestores públicos. No caso, bairros mais ricos teriam maior propensão a receberem obras de urbanizações de favelas mais robustas, que “apaguem” traços típicos das favelas e que, assim, não desvalorizem tanto o entorno.
Em segundo, está a fatia de recursos que cada intervenção recebeu. O Sapé arrecadou dinheiro de fundos públicos municipais, como o Fundo de Desenvolvimento Urbano (FUNDURB) e o Fundo Municipal de Saneamento Ambiental e Infraestrutura (FMSAI), e do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do governo federal, que, juntos, representaram cerca de 160 milhões de reais. Já o Real Parque recebeu mais de 338 milhões de reais oriundos da Operação Urbana Faria Lima.
Leia mais: Urbanização de favelas em São Paulo e modelos de financiamento
A terceira razão vem justamente da diferença na forma como as urbanizações das duas favelas foram financiadas. Como mencionado, o Real Parque esteve no bojo de uma Operação Urbana Consorciada (OUC), enquanto o Sapé, não. As OUC são mecanismos de intervenção em áreas urbanas valorizadas ou com potencial de valorização e de interesse do mercado imobiliário. Elas arrecadam valores a partir da venda de metros quadrados além do originalmente autorizado pela legislação para a construção de empreendimentos. Essa venda é feita pela prefeitura na forma de títulos financeiros, os CEPAC (Certificados de Potencial Adicional de Construção). As receitas financiam investimentos do poder público na área da operação ou nos arredores – como foi o caso da urbanização do Real Parque, nas proximidades do perímetro da OUC Faria Lima.
Nas operações urbanas consorciadas, executam-se “obras-âncora” já de início para a alavancagem e valorização do perímetro e para a atração de investimentos do setor privado. A extensão da Avenida Faria Lima, em 1995, cumpriu esse papel. 10% dos CEPAC vendidos depois dessas obras financiaram a construção de unidades de Habitação de Interesse Social (HIS), revertidos em parte para o Real Parque.
Embora o Real Parque tenha despertado maior interesse do mercado e mais investimentos públicos, a dissertação apontou que, quando comparadas, as urbanizações do Real Parque e do Sapé parecem ter valorizado seus respectivos entornos dentro de uma mesma tendência. Isto é, o preço do metro quadrado nos respectivos distritos subiu entre 2008 e 2015 – antes, portanto, das duas intervenções se iniciarem – acompanhando uma tendência verificada em São Paulo como um todo. O número de lançamentos imobiliários também não pareceu ter sido afetado pelas obras.
Leia mais: Serviços e segurança pública: quanto um programa de urbanização de favelas pode entregar?
Essa realidade é, contudo, mais intensa dentro dos assentamentos urbanizados. Conforme explicado em outro artigo, relatos de uma moradora indicavam que havia unidades no Real Parque sendo vendidas por até 80 mil reais no pós-obra. Antes da reconstrução, os domicílios eram desapropriados por cerca de 8 mil reais, o que indica uma valorização de quase 1.000%.
“Eu não vejo uma relação significativa entre a urbanização de favelas e a valorização imobiliária do entorno imediato”, declarou um representante das incorporadoras na cidade de São Paulo à época da pesquisa. Pode-se concluir, então, que a decisão de se intervir em assentamentos de determinadas áreas segue outras lógicas que não necessariamente a do mercado imobiliário. Entretanto, o mesmo não pode ser dito das OUC, cujo estabelecimento em áreas específicas segue, sim, uma lógica de mercado.
O que parece ter acontecido no caso da OUC Faria Lima é que se uniu o útil ao agradável. Ou seja, optou-se pela intervenção em uma área com potencial de valorização e, a esse plano, agregou-se a urbanização de um assentamento precário nas proximidades – que recebeu mais recursos que outras obras de urbanização cidade afora e que, talvez por estar em uma área mais rica, foi alvo de uma não costumeira reconstrução total.
É importante entendermos que a política de urbanização de favelas não depende – e deve seguir não dependendo – das operações urbanas consorciadas. Embora a legislação tenha avançado ao demandar investimentos em HIS nas OUC, não podemos esperar que as operações condicionem as urbanizações. Afinal, a maioria das favelas paulistanas não está em bairros de maior renda e de interesse do mercado. Esperar, portanto, que as urbanizações sejam atreladas aos perímetros das OUC seria uma forma equivocada de se conduzir a política urbana.
Guilherme Rocha Formicki é doutorando em Planejamento Urbano e Regional na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Arquiteto e urbanista formado na FAU-USP, cursou o mestrado em Planejamento Urbano pela Universidade de Columbia (EUA). Lá, ganhou o prêmio Charles Abrams pela dissertação com o maior comprometimento com justiça social. Guilherme trabalhou na Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo entre 2014 e 2016, com atuação na urbanização de sete favelas das zonas Sul e Oeste da cidade.
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