O que o Parque Ibirapuera em São Paulo tem a ver com o Nobel de Economia?
Na perspectiva do desenvolvimento econômico, vemos que alguns aspectos da configuração urbana de São Paulo são excludentes.
Uma série de semelhanças entre a capital paulista e a guatemalteca, como a violência e a desigualdade social, levou ambas a um polêmico ranking de cidades mais feias do mundo. A coincidência me pareceu um convite para compararmos dois “bairros planejados” dessas cidades: o Jardim das Perdizes, em São Paulo, e Cayalá, na Cidade da Guatemala.
8 de agosto de 2024Todas as cidades feias se parecem? Cada cidade bonita é bonita à sua maneira?
Antes de qualquer coisa, é preciso reconhecer que a beleza é um conceito subjetivo – ela está nos olhos de quem vê, já reza o clichê. Nem por isso devemos fugir do debate para tentar entender o que faz de cidades como Buenos Aires ou Paris, por exemplo, lugares tão mais agradáveis do que a caótica e concretada capital paulista. Deixando de lado a subjetividade, podemos pensar em aspectos concretos que promovem (ou não) a qualidade urbanística de uma cidade ou bairro.
Em artigo do Caos Planejado, o urbanista Anthony Ling foi categórico ao afirmar que “o Brasil urbano é feio demais”, atribuindo ao menos parte do problema ao “planejamento demasiado, que impede que o desenvolvimento urbano responda às demandas dinâmicas de transformação” das cidades.
Nesse sentido, viadutos cortando bairros, dependência do automóvel, zoneamento que segrega os usos e imposição de recuos frontais e laterais nas edificações seriam alguns dos fatores estabelecidos ou gerados pelo planejamento urbano que estariam por trás da falta de qualidade das cidades brasileiras.
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O site U City Guides foi além e resolveu fazer uma lista das 10 grandes cidades mais feias do mundo, na qual aparecem São Paulo, Detroit, Houston, Caracas e Cidade da Guatemala, entre outras. Em comum, todas elas apresentam algumas das seguintes características: presença de imóveis abandonados nas áreas centrais, moradores de rua, muitas favelas, elevada desigualdade social, altas taxas de criminalidade, congestionamentos, sujeira e poluição.
Seja como for, por pior que seja uma cidade, é muito provável que ela tenha prédios, ruas, quadras ou mesmo bairros inteiros agradáveis e vibrantes. Por sinal, muito da atratividade de um local não está necessariamente na arquitetura dos prédios ou no encanto das paisagens, mas na presença de gente circulando pelas ruas – e aspectos urbanísticos têm um papel fundamental nisso: elevada densidade populacional, usos mistos e fachadas ativas, por exemplo, costumam estar associados à maior circulação de pessoas.
É inegável, por exemplo, a beleza e o charme – ainda que decadente – de certas áreas do centro de São Paulo, com seus prédios históricos geminados e suas ruas estreitas cheias de gente ao longo do dia, especialmente quando comparadas a bairros mais novos, muitas vezes pouco atraentes apesar de planejados e construídos do zero.
Em artigo do Caos Planejado, por sinal, classifiquei “bairros planejados” de São Paulo, desenhados e construídos do zero, como verdadeiras “oportunidades desperdiçadas de se tentar transformar concentração de gente e dinheiro em lugares vivos, criativos e interessantes”.
Um desses “bairros” é o Jardim das Perdizes, inaugurado em 2013 e que recentemente ganhou destaque no debate urbanístico por causa do provocativo artigo do jornalista Raul Juste Lores em sua coluna de estreia no UOL, a qual foi prontamente respondida no LinkedIn pelo Hélio Mítica, urbanista responsável pelo projeto – com direito a tréplica de Lores em sua coluna seguinte.
Por coincidência ou não, mais ou menos no período em que se discutiam qualidades e defeitos urbanísticos do Jardim das Perdizes, a BBC publicou uma reportagem sobre Cayalá, uma “pequena cidade” planejada inaugurada em 2011 na capital guatemalteca – capital que, assim como São Paulo, também figura na lista das grandes cidades mais feias do mundo da U City Guides. Comparando esses dois “bairros”, podemos identificar como certos aspectos urbanísticos podem ser positivos ou negativos para os frequentadores do espaço.
Enquanto o Jardim das Perdizes parece reproduzir grande parte dos problemas que tornam as cidades brasileiras pouco aprazíveis, como a dependência do automóvel, as torres exclusivamente residenciais isoladas no lote, sem fachada ativa, protegidas por muros e pouco integradas à rua, aos espaços públicos e ao transporte de massa – e não vou entrar aqui na discussão das razões por trás disto –, o projeto de Cayalá foi buscar inspiração nas cidades mais antigas, que têm características quase que diametralmente opostas às descritas acima. Vale citar aqui, inclusive, a cidade Antigua Guatemala, um exemplo geograficamente próximo da Cidade da Guatemala, fundada no século 16, com seus edifícios históricos sem recuos e muita caminhabilidade.
“Será que o futuro das nossas grandes cidades não passaria, na verdade, pela retomada de modelos de cidade… do passado?”, questionei em outro artigo. Essa é exatamente a premissa do “Novo Urbanismo”, o qual orientou o planejamento de Cayalá, local que respeita a escala humana e é muito mais caminhável, agradável e integrado do que o Jardim das Perdizes, por exemplo. Entre as principais propostas desse movimento de design urbano está a criação de bairros onde se possa fazer quase tudo a pé, com o objetivo de mitigar males associados ao espraiamento das cidades e à dependência do automóvel.
Por que duas cidades com problemas tão semelhantes, como a desigualdade social e a sensação de insegurança, construíram “bairros planejados” tão diferentes?
Em sua coluna, Raul Juste Lores parece atribuir grande parte da responsabilidade pelos problemas urbanísticos do Jardim das Perdizes a quem constrói na cidade, que, entre outros equívocos, utilizaria referências ruins, como a polêmica Dubai. Já para Hélio Mítica, muito do que hoje pode ser entendido como problema do “bairro planejado” está associado, principalmente, ao perfil da produção imobiliária e à legislação da época.
Cayalá, inaugurada no mesmo período, por sua vez, parece ter contado tanto com um planejamento orientado por boas referências quanto com plena liberdade para a execução desse planejamento. É o que sugere um vídeo sobre a “cidade” elaborado pelo canal The Aesthetic City.
Nem por isso, contudo, Cayalá deixa de ser alvo de críticas. Há quem a classifique como um “gueto para ricos”, uma evidência gritante das desigualdades sociais. Ainda que Cayalá seja aberta ao público, sem portarias ou cancelas – assim como o Jardim das Perdizes –, há também quem chame atenção para as “barreiras invisíveis” existentes para afastar “pessoas estranhas”.
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Tanto São Paulo como a Cidade da Guatemala, como já foi dito, sofrem com problemas estruturais ligados à desigualdade social e violência, e condomínios fechados de alto padrão ou bairros planejados para ricos podem ser considerados muito mais reflexos dessas características do que causas dos problemas. Entretanto, é interessante notar que projetos como o de Cayalá tentam endereçar o problema da insegurança por meio do desenho urbano, sem a necessidade de grandes, muros ou cercas, como é comum nos bairros das cidades brasileiras.
Costumo argumentar que, por mais que o luxo e a ostentação possam ser interpretados como elementos quase que ofensivos em países tão desiguais e injustos como o Brasil ou a Guatemala, ao menos quando pensamos na qualidade do espaço ainda me parece preferível o comércio de luxo em uma rua como a Oscar Freire – aberta para a cidade apesar de suas “barreiras invisíveis” – ao luxo isolado em bunkers como o Shopping Cidade Jardim. Da mesma forma, um projeto como o de Cayalá, a despeito das críticas, também me parece preferível aos projetos de condomínios de luxo fechados ou bairros planejados para ricos que se espalham por todo o estado de São Paulo – e que quase sempre reproduzem muitas das características que tornam as nossas cidades tão ruins.
Se há alguma lição a tirar do projeto de Cayalá, portanto, é que novos loteamentos ou mesmo grandes condomínios talvez mereçam regras de ocupação muitos mais flexíveis; regras que permitam, por exemplo, replicar as características que fazem das cidades mais antigas lugares tão caminháveis e agradáveis. As exigências legais, nesses casos, deveriam se concentrar muito mais na acessibilidade ao público em geral e na integração do novo bairro ou condomínio ao sistema de transporte e ao entorno.
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E respondendo às perguntas que abrem o texto, ainda que as cidades “feias” tenham muitas semelhanças, é possível observar que as cidades que as pessoas mais gostam de visitar, conhecer e caminhar geralmente também têm características em comum.
Compreender essas características, que parecem bastante associadas aos modelos de cidade do passado, anteriores à predominância do carro como meio de transporte, parece ser a chave para tornar áreas de cidades como São Paulo mais agradáveis, vibrantes e interessantes.
Vitor Meira França é economista pela FEA-USP e mestre em economia pela EESP-FGV
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