“Mais Valerá”, não espere para amanhã o que pode fazer hoje

3 de julho de 2024

Tenho escrito, em diversas oportunidades, sobre o tema da “Mais Valia”. Porém, tenho feito essas análises de forma muito técnica. Aproveitando que uma nova lei foi aprovada recentemente, resolvi então, desta vez, falar de forma mais descontraída ou, quem sabe, mais leiga. Como é um tema recorrente na cidade do Rio de Janeiro, resolvi trazê-lo de novo para reflexão.

A “Mais Valia” é a maneira que os governos municipais encontraram para legalizar os famosos e conhecidos puxadinhos. O puxadinho é uma tradição carioca; desde a criação dos pavimentos de cobertura na cidade, na década de 1940, o carioca não resiste a dar uma “aumentadinha” neles. As coberturas sempre foram propostas com uma ocupação menor do que a dos pavimentos inferiores de apartamentos, então eram compostas por uma parte coberta e outra descoberta, o chamado terraço, uma espécie de coroamento do edifício. Mas, quando o proprietário via aquele “terração” descoberto, ele não aguentava: “Vou dar uma aumentadinha”.

Portanto, a “Mais Valia”, na cidade do Rio de Janeiro, vem se perpetuando por diversas gestões. Ela se propõe a regularizar construções que estejam irregulares e fora do que a legislação urbanística permite, mediante pagamento. Essas propostas sempre tiveram um caráter arrecadatório e sempre incentivaram os proprietários de imóveis a construírem irregularmente, sabendo que sempre surgiria uma lei de regularização no futuro. Até porque os textos das leis diziam que só seriam regularizadas construções existentes; aí estava o gatilho para o proprietário de cobertura fazer sua obra ilegalmente, pois não poderia pedir antecipadamente uma licença para essa ampliação.

De repente, em um lampejo, surge uma ideia, e a prefeitura pensa assim: “Por que não faço uma proposta em que o proprietário possa aumentar sua cobertura ainda no projeto e, assim, já posso cobrar por isso?”. Surge assim a “Mais Valerá”, ou seja, não espere para amanhã o que pode fazer hoje. E é isso que diz essa nova proposta de lei; não somente coberturas, mas tudo que você quiser ampliar poderá ser feito.

Por fim, temos a questão da paisagem, assunto tão caro para a cidade do Rio de Janeiro, que tem nela seu maior patrimônio. Com as diversas permissões de puxadinhos verticais e também horizontais, todo o plano urbanístico proposto, que se baseia na manutenção da ambiência e da paisagem da cidade, vai por água abaixo.

Tirando as ironias, o que temos proposto é uma desconexão do que se discutiu durante dois anos e meio na aprovação do Plano Diretor, que teve o objetivo de concentrar todas as legislações de bairros em um único texto que tivesse uma homogeneização de parâmetros e propostas para a paisagem da cidade. E, pouco tempo depois de sua aprovação, já temos uma nova proposta que burla todos esses parâmetros e que rompe com a forma urbana tão duramente pensada pelos urbanistas envolvidos na elaboração do Plano.

Nunca quis morar em uma cobertura, vai que me empolgo. Não tenho esperança de que isso mude; teremos sempre esse tipo de legalização. Só quis desabafar com outras pessoas. Obrigado por ouvir.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Arquiteto pela Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ (1991), é Mestre em Arquitetura (2010) e Doutor em Arquitetura (2014) pelo PROARQ da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ. É professor da Universidade Veiga de Almeida e do Mestrado Profissional no Programa de Pós-graduação em Projeto e Patrimônio da UFRJ. Sócio do escritório DCArquitetura e consultor de Planejamento Urbano. Autor de quatro livros sobre as transformações urbanas da cidade do Rio de Janeiro.
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