Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Qual a eficiência no uso do espaço urbano entre carros e ônibus no transporte de passageiros com base nas teorias de Alain Bertaud?
4 de setembro de 2023A crítica mais famosa do espaço desmedido ocupado pelos automóveis foi representada por um cartaz da cidade de Müenster, que compara o espaço ocupado por 60 carros, um ônibus e 72 bicicletas (todos transportando 72 pessoas). A imagem deixa evidente que o espaço ocupado pelos automóveis para transportar o mesmo número de passageiros é espantosamente maior.
Anteriormente, apontei em vídeo e num artigo que a comparação da prefeitura de Müenster, apesar de didática e impactante, subestimava o verdadeiro espaço ocupado pelos automóveis. A foto não leva em consideração todo o espaço ocupado pelos automóveis quando estão em movimento. Além disso, os automóveis demandam uma grande disponibilidade de infraestrutura viária, estacionamentos e garagens quando estão parados.
Em seu livro “Ordem sem design”, Alain Bertaud reconhece a validade teórica de considerar o espaço ocupado pelos automóveis quando em movimento. Inclusive, o autor propõe um cálculo simples para averiguar as distâncias de segurança entre os veículos. O urbanista calcula a área viária usada por passageiro, usando como referência a recomendação de que cada veículo deve manter uma distância de dois segundos do veículo da frente.
As tabelas a seguir apresentam os resultados encontrados pelo autor para diferentes modos de transporte:
Os números da tabela sugerem que os ônibus são espantosamente mais eficientes no uso do espaço viário, ocupando 50 vezes menos área por passageiro do que um automóvel padrão. Para Alain Bertaud, se essa fosse a realidade de fato, isso justificaria o banimento dos automóveis nas cidades.
Entretanto, em termos práticos, Alain Bertaud considera a comparação incorreta. Ele aponta que não é possível para os ônibus trafegar a uma distância de dois segundos entre eles, pois precisam parar recorrentemente para embarque e desembarque de passageiros.
Nesse sentido, é desejável que a partida de cada ônibus seja sincronizada com o restante do transporte coletivo, para evitar retenção dos que vêm atrás. Por esse motivo, os intervalos entre os ônibus nos centros das cidades variam de um a dez minutos. O autor propõe que essa deva ser a métrica de comparação utilizada, e não a impraticável distância de 2s entre cada veículo.
A partir de então, Alain Bertaud propõe uma nova metodologia para verificar e comparar a taxa de ocupação da via por diferentes meios de transporte. Para ele, o importante é averiguar a capacidade de cada meio de transporte, expressa em passageiros por hora por faixa de rolamento, o que permite aferir a taxa de carregamento da via.
No caso dos automóveis, a partir da distância de segurança de 2s entre eles, o autor calculou a taxa de carregamento de uma faixa de rolamento da via. Conforme suas estimativas, os automóveis podem chegar a transportar algo entre 1.500 e 1.900 passageiros por hora, capacidade essa que varia de acordo com a velocidade praticada.
Uma linha de ônibus comum levando 86 passageiros com intervalos de três minutos entre veículos consegue transportar por volta de 1.720 passageiros/hora.
Para melhorar ainda mais esse desempenho, Alain Bertaud sugere ser preciso diminuir os intervalos de paradas e diversificar as linhas que cobrem determinado segmento. Em Manhattan, Nova York, uma linha de ônibus expresso (com uma parada a cada 500 metros) e três de ônibus padrão (com uma parada a cada 160 metros) conseguem de forma combinada parar a intervalos de 1 min e 48s para um mesmo segmento de via. Conforme o autor, “usar paradas de ônibus diferentes para linhas diferentes na mesma rua permite aos operadores aumentar o intervalo entre os veículos e, portanto, a capacidade da faixa de rolamento” (…). A partir desses cálculos, o autor compara a capacidade de carregamento dos ônibus com os automóveis.
Observa-se que a capacidade de carregamento de um ônibus expresso com intervalos de 5 min é de 1.032 passageiros por hora (60 × 86/5). A capacidade sobe para 2.800 passageiros quando se consideram as 4 linhas combinadas, desde que os ônibus estejam na sua capacidade máxima. Já os automóveis, a depender da velocidade praticada, teriam uma capacidade de transportar perto de 2.000 passageiros, o que está acima dos 1.032 transportados por um ônibus com intervalos de 5 minutos e não muito distante do total das 4 linhas combinadas.
O autor chega, então, à conclusão de que o transporte coletivo só é mais eficiente que os automóveis sob certas condições, em especial quando estão perto de sua capacidade máxima de lotação, quando várias linhas são disponibilizadas, e quando utilizam intervalos de paradas menores. Argumenta ainda que, apesar de os automóveis serem desengonçados e ineficientes, quando combinados com os ônibus podem transportar conjuntamente cerca de 5.000 passageiros por hora por direção.
Sem dúvida, a comparação proposta por Alain Bertaud é mais realista e adequada. Entretanto, entendo que o autor a fez de forma incompleta. O pesquisador da New York University lembrou da importância de se considerarem embarques e desembarques para passageiros de ônibus, mas se esqueceu de usar o mesmo critério para os outros modos de transporte, o que no caso dos automóveis faz uma grande diferença.
Em algum momento, os automóveis também precisam parar ou estacionar para que motoristas e passageiros possam chegar aos seus destinos. Obviamente, isso não é feito com um sistema de ejeção do motorista, o qual permitiria manter o carro em movimento e a 2s de distância dos outros. O processo de estacionar também causa uma perda na capacidade de carregamento da via, perda essa que pode ser tão ou mais relevante que os embarques/desembarques dos ônibus. Inspirado em exemplos relacionados no livro de Donald Shoup, relacionei algumas situações bem corriqueiras que podemos observar em cidades brasileiras:
1 – Provavelmente, a pior situação é quando existe oferta de vaga de estacionamento na via pública. Realizar manobras para entrar e sair de vagas na via urbana pode ser bem demorado. No caso de uma baliza, o tempo que o veículo “fecha” a faixa de rolamento da direita pode passar de 1 minuto. Se o veículo de trás encostar no da frente, impedindo a manobra, esse tempo tende a se alongar ainda mais (e gerar potenciais conflitos e discussões). Para se ter uma ideia, em algumas provas de Detran, o tempo para se completar a baliza é até de 5 minutos;
2 – O segundo problema das vagas de estacionamento em via pública é que elas geralmente são gratuitas ou cobram preços abaixo do que permitem deixar algumas vagas disponíveis. Basta observar que o preço praticado em estacionamentos particulares perto desses locais costuma ser bem maior. A consequência é que um contingente considerável de carros fica procurando vagas no entorno de seus destinos.
Donald Shoup, em seu livro The High Cost of Free Parking, estima que em locais onde há oferta de vagas de estacionamento públicas, o percentual de carros que trafegam procurando vaga é de em média 30%. Nesse caso, a taxa de carregamento da via dos automóveis será necessariamente 30% menor do que o apontado por Alain Bertaud.
3 – As entradas e saídas de garagens/estacionamentos também impactam no fluxo da via. Em primeiro lugar, se houver fluxo de pedestres, os carros que entram precisarão esperar algum tempo para acessar as garagens. Em segundo lugar, se um veículo estiver saindo enquanto outro entra, isso resultará numa indefinição de quem tem prioridade, resultando no trancamento da faixa da direita até que a situação se decida. Por fim, o veículo que sai o faz sob uma velocidade menor e, muitas vezes, precisa da gentileza de outro veículo já em movimento, que precisará reduzir a velocidade.
Quem dirige nas grandes cidades brasileiras sabe o quão recorrentes são essas situações e que elas costumam ter desdobramentos de lentidão não apenas para a faixa contígua ao local em que se pretende estacionar, mas também para a segunda e até mesmo para a terceira faixa. Pesquisa realizada por Marzumd em três ruas de Calcutá estimou que a perda de velocidade ocasionada por carros estacionando junto à calçada foi de 8% a 18%, o que teria resultado numa perda de capacidade de carregamento da via de 4% a 9%.
Além de carros estacionando reduzirem a velocidade da via, eles podem resultar em sinistros de trânsito. Donald Shoup cita diversos estudos que apontam que entre 16% e 20% dos acidentes nas vias urbanas envolvem motoristas tentando estacionar em vagas públicas, acidentes estes que inevitavelmente reduzirão ainda mais a capacidade de carregamento da via.
Assim, fica claro que a ideia de carros circulando a 2s de distância uns dos outros também não se apresenta como um cenário realista. Isso só é possível em avenidas especialmente projetadas para essa função, o que implica necessariamente na proibição de estacionamentos públicos e privados no entorno, o que na maioria dos lugares é uma exceção.
As considerações feitas por Alain Bertaud para os ônibus se mostram pertinentes, mas é preciso que também se considere a perda de velocidade e retenções causadas pelos automóveis quando precisam estacionar.
Nesse sentido, se estiverem corretos os percentuais apresentados por outros autores, a capacidade de carregamento da via pelos automóveis vai ser de algo entre 1.100 e 1.200 por faixa de rolamento (1.900 menos 30% de quem procura vaga e menos 9% da perda de tempo ocasionada por quem estaciona), ou até menos, caso consideremos a perda de tempo por conta de acidentes.
Esses valores são bem menores do que os quase 2.000 estimados por Alain Bertaud. Ainda assim, verifica-se que os ônibus dificilmente vão conseguir transportar mais do que o dobro de passageiros que os automóveis. Eles só o farão se: 1) Estiverem perto da capacidade máxima de lotação; 2) Adotarem intervalos de parada menores do que quatro minutos. Caso contrário, os carros mostrarão algum grau de competitividade na capacidade de transportar passageiros por hora.
Assim, para aumentar de forma relevante o número de pessoas transportadas é preciso ir além. Para isso, deve-se considerar a capacidade de transporte de motos, bicicletas, BRTs e metrô, bem como avaliar a possibilidade de adotar uma taxa de congestionamento para os automóveis. Entretanto, essas são questões para um novo artigo.
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