Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
O desafio do Tietê é bem mais complexo que o do rio Pinheiros. Mas, no mundo inteiro está em voga um processo de despoluição de rios urbanos.
29 de junho de 2023Nadar no Tietê. Embora muita gente tenha feito isso até os anos 1930 — quando o rio já estava poluído, mas muito menos que agora, e havia competições de natação e remo até no trecho dentro da capital paulista —, ninguém acredita que isso será possível nos próximos anos. Limpar o rio, porém, é uma ambição factível; desde que se entenda que há várias gradações dentro da categoria “limpo”.
“Um rio limpo não é necessariamente aquele em que você pode tomar banho”, diz Tomas Alvim, coordenador do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper.
O rio Pinheiros, também em São Paulo, é um bom exemplo. Uma das metas do processo de limpeza concluído em 2022 era reduzir a demanda bioquímica de oxigênio (DBO), um dos índices que atestam a qualidade da água, para um número inferior a 30 miligramas por litro. Uma taxa nesse nível já é capaz de eliminar o odor, incentivando o convívio urbano, e até permitir a volta de alguns peixes mais resistentes à poluição, como o bagre. Torná-lo adequado para banhos, no entanto, de acordo com critérios da Agência Nacional de Águas, exigiria um índice DBO abaixo de 10 mg/l.
“No caso de rios dentro das cidades, os critérios para considerar a água limpa costumam ser mais flexíveis”, afirma a advogada Safira De La Sala, doutora em planejamento urbano e coordenadora adjunta do Núcleo de Cidade e Regulação no Laboratório. “Em tese, rio urbano não é para nadar.” Isso acontece porque grandes populações produzem detritos e sujeira em excesso.
É neste contexto que deve ser entendida a recente promessa do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, de limpar o rio Tietê até o final de seu mandato, em 2026. Para isso anunciou, no último dia de março, um investimento de 5,5 bilhões de reais. É um projeto similar ao do ex-governador João Doria, que investiu cerca de 4 bilhões de reais em quatro anos para revitalizar o rio Pinheiros.
O problema é que o Tietê apresenta um desafio muito mais complexo que o Pinheiros. Não é só a quantidade de esgoto e dejetos industriais que ele recebe, de 3 bilhões de litros por dia. Nem apenas a extensão do problema, com um trecho de mais de 120 quilômetros considerado morto (praticamente sem oxigênio), mais de 10% de todo o rio.
Tratar o Tietê é uma questão de outra magnitude. “Um dos maiores complicadores para a limpeza do Tietê é o seu tamanho”, diz Tomas. “É um rio transmunicipal.” Isso torna o problema muito mais heterogêneo. “Em cada localidade, o tipo principal de poluição é diferente”, explica Safira. “Num lugar é a atividade rural, em outro são as indústrias, num terceiro é a falta de tratamento de esgoto de moradias.”
Problemas diferentes exigem soluções diferentes, encaminhamentos políticos diferentes, estrutura de implementação de projetos diferentes. Para complicar mais um pouco, cada municipalidade tem autonomia — e prioridades diferentes. “Fora os municípios, temos a região metropolitana, um aglomerado de municípios que é também um órgão de governo, embora não esteja devidamente regulamentado”, lembra Safira. Ou seja, os desafios políticos se somam às dificuldades técnicas.
Pelo menos hoje em dia já se sabe que o problema é complexo. Há 30 anos, quando começaram os esforços para limpar o Tietê, o então governador paulista Antônio Fleury Filho declarou que ao final do projeto, em 2005, o rio estaria tão limpo que ele beberia água retirada dali. Era um otimismo típico da época: em 1988, o então prefeito de Paris, Jacques Chirac, prometeu que se banharia no rio Sena em cinco anos, ao final do projeto de limpeza. Nem lá nem cá se cumpriram as promessas, assim como nos Estados Unidos teve pouco resultado a Lei da Água Limpa, promulgada em 1972, que previa tornar todos os rios e lagos do país aptos para pesca e natação num prazo de dez anos.
Não é que esses esforços tenham falhado completamente. Eles levaram a progressos. Porém, foram insuficientes; e as populações aumentaram. No caso de Paris, houve melhorias significativas no sistema de esgotos e a poluição foi reduzida, embora não ao nível desejado. No caso de São Paulo, a qualidade do Tietê também vem apresentando melhoras ao longo dos anos.
Quando o primeiro projeto de limpeza começou, cerca de 70% do esgoto residencial da região metropolitana era coletado e apenas 24% passava por tratamento. Agora, de acordo com a Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente de São Paulo, a coleta de esgoto foi ampliada para mais de 90% da área urbanizada, com tratamento de 85% deste volume.
Esse avanço não saiu barato. Só nos últimos dez anos, segundo o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, os diversos projetos de despoluição do Tietê (um total de 46 contratos) custaram aos cofres públicos 2,2 bilhões de reais. Mesmo assim, um estudo concluído no ano passado pela Fundação SOS Mata Atlântica alertou que a mancha de poluição no rio cresceu 40% em relação a 2021. De acordo com o relatório, a mancha se estende agora por 122, dos 576 quilômetros analisados, entre sua nascente, em Salesópolis, e o reservatório da usina hidrelétrica de Barra Bonita. A extensão do rio com água de boa qualidade caiu de 124 para 60 quilômetros.
O motivo, conforme a explicação dada ao site de notícias UOL por Gustavo Veronesi, coordenador da causa Água Limpa da SOS Mata Atlântica, é que a qualidade da água melhorou na região metropolitana, mas a expansão das cidades do interior levou a um aumento da poluição do rio em outros locais.
Por que a limpeza demora tanto? “Trinta anos é um prazo razoável para a despoluição de um rio, dependendo do tamanho da população”, avalia Safira De La Sala. As experiências internacionais servem de baliza. Paris, como vimos, começou a limpar o Sena há mais tempo. Na Inglaterra, os esforços para despoluir o Tâmisa começaram ainda antes, na década de 1960.
O rio que corta Londres tem séculos de história de uma poluição dramática, até fatal. O verão de 1858 entrou para a história como “o grande fedor”, quando o nível de dejetos humanos e industriais chegou a tal ponto que os habitantes começaram a deixar a cidade. Nessa mesma época, o médico John Snow descobriu que a epidemia de cólera que matava milhares de pessoas era causada pela contaminação da água, e não pelos “maus ares” a que se atribuía a doença.
A emergência levou a cidade a construir uma rede de esgoto. Entretanto, a canalização servia apenas para jogar os dejetos num ponto do rio mais distante da cidade, sem tratamento nenhum. O problema foi se agravando até que, em 1957, pesquisadores concluíram que já não havia oxigênio suficiente na água para sustentar a vida. O Tâmisa foi considerado morto. A partir daí começou uma mobilização para recuperar suas águas e o entorno. No início da década de 1960, começaram a ser aprovadas leis em prol de padrões mínimos de qualidade da água e, 15 anos depois, todo o esgoto despejado no rio já era tratado.
Uma das providências tomadas pelos ingleses foi instalar máquinas oxigenadoras no rio, as “borbulhadoras”. Elas foram sendo modernizadas conforme a tecnologia avançava, mas mesmo os modelos iniciais já começaram a dar resultado. Em 1967 foram vistos os primeiros peixes no Tâmisa. Logo em seguida foram encontradas 19 espécies de peixes de água doce e 92 espécies marinhas. No início dos anos 1980, a volta do salmão ao Tâmisa foi festejada como um acontecimento pelos conservacionistas. Hoje há cerca de 125 espécies de peixe e outros animais, incluindo cavalos-marinhos.
Na virada do milênio, duas espécies de focas que não eram vistas havia anos passaram a frequentar o rio. Os pássaros também começaram a voltar, assim como algumas espécies de morcegos. Até botos têm sido vistos no centro de Londres.
Em parte, a demora na limpeza de um rio, especialmente em locais densamente povoados, se deve à complexidade do problema. Mas não se pode descartar outro motivo: o assunto não era tão prioritário a ponto de merecer os esforços e investimentos necessários. Com a crescente conscientização ambiental e a agenda da contenção das mudanças climáticas, a situação mudou.
No Reino Unido, o governo estabeleceu uma ambiciosa meta de ter 75% dos rios do país em “bom estado ecológico” até 2027. E os esforços de despoluição do Tâmisa não pararam, ao contrário. Dado que o sistema de esgotos foi projetado para uma cidade de menos de 5 milhões de pessoas e hoje há o dobro disso, já está em construção uma rede subterrânea de 25 quilômetros de um “superesgoto”, que deve ser concluída em 2025. Além dela, há investimentos previstos para evitar que as cada vez mais frequentes tempestades carreguem sujeira e água para o rio (causando inundações).
Em Paris, a promessa de despoluir o rio Sena foi um dos fatores para a escolha da cidade como sede das próximas Olimpíadas. Estão inclusive programadas duas provas de natação no rio. Para promover a limpeza (e levantar a proibição vigente de entrar nas águas do Sena), a França está investindo 1,5 bilhão de dólares.
O problema é semelhante ao de Londres. Um sistema de esgotos antigo (neste caso, desenhado nos anos 1860 por George-Eugène Haussman) fazia com que as águas da chuva e do esgoto corressem pela mesma rede. Algumas obras de modernização já fizeram com que o esgoto não tratado que cai no Sena fosse reduzido em 90% em relação a 20 anos atrás. Ainda não foi suficiente. O novo plano é construir um túnel que fará com que a água da chuva seja desviada da rede de esgotos, para ser tratada numa estação mais longe antes de ser transferida para o rio.
Em cidades menores, como Zurique, Copenhague, Munique, os projetos de limpeza já permitiram a abertura dos rios urbanos para o banho.
Em Portugal, o rio Tejo, com seus 1.100 quilômetros de extensão, ganhou investimentos de 800 mil euros em 2019. Em pouco mais de dois anos, a ocorrência de golfinhos em suas águas saltou de uma média de 10 para mais de 200 vezes por ano.
Nada mais simbólico do que a guinada da China. Nas últimas décadas famoso pela intensa poluição provocada pelo acelerado crescimento econômico, o país passou a investir pesadamente em projetos de despoluição. No final de março, o governo publicou uma lista de 78 rios e 10 lagos que passarão por planos de restauração para se tornarem limpos até 2025.
Em cada um desses casos, as soluções são um pouco diferentes. “Em linhas gerais, o processo de limpeza tem três focos de atividades”, diz Safira, do Insper. “Parar a fonte de poluição; coletar o lixo existente; recuperar a vida.”
No caso do rio Pinheiros, todos os avanços anteriores não haviam levado o rio ao ponto em que as melhoras eram perceptíveis. Essa barreira foi rompida com algumas inovações da gestão Doria, sendo a principal a adoção de contratos de desempenho com a Sabesp: o estado pagaria não conforme as obras realizadas, mas segundo metas atingidas de melhora nas taxas de poluição da água.
Para isso foi fundamental uma negociação para que a empresa pudesse fazer obras de saneamento básico em regiões de ocupação irregular — sem que isso implicasse uma regularização fundiária. Ou seja, encontrou-se uma saída para atacar o problema do rio de forma independente da questão de ocupação urbana.
“Eu ainda tenho dificuldade de dizer que o problema do Pinheiros está resolvido”, diz Tomas. “Porque ele é um problema intersetorial. Foi resolvido o problema da limpeza, mas não os problemas da região num sentido mais amplo: demandas de moradia, assentamentos em áreas de proteção e regularização fundiária continuam sem solução.”
Em Seul, um dos maiores casos de sucesso em revitalização de rios, os problemas eram completamente diferentes. Em meados do século passado, a rápida urbanização da capital sul-coreana levou à formação de favelas em volta do riacho Cheonggyecheon. O governo resolveu o problema de forma radical: concretou o rio, demoliu as casas e construiu no local uma avenida de 6 quilômetros. Vinte anos depois, em 1971, o governo dobrou a aposta: construiu um viaduto de 6 quilômetros, com seis faixas para carros, para dar vazão ao tráfego de carros.
Até que veio a vingança. O Cheonggyecheon, um rio que costumava secar no outono e na primavera e inundar com as águas das chuvas de verão, manteve seu ritmo sob a terra, acumulando monóxido de carbono, metano e outros gases, corroendo aos poucos as fundações do viaduto.
No ano 2000, quando um estudo de engenharia detectou a ameaça à estrutura das vias para carros, especialistas calcularam que o conserto custaria 95 milhões de dólares. O então prefeito Lee Myung-bak propôs então um outro caminho: derrubar o viaduto, trazer o rio de volta, transformar a área em uma região revitalizada, a ser ocupada por pedestres.
Hoje o rio é um ponto turístico e de diversão para os cidadãos; a biodiversidade aumentou em mais de sete vezes, de 17 espécies de peixes e pássaros para 400; a qualidade do ar melhorou em 35%; o calor diminuiu entre 3,3 ºC e 5,9 ºC. E o prefeito Myung-bak, pouco tempo depois da restauração, alcançou a presidência da Coreia do Sul.
O projeto deu tão certo que outras cidades passaram a copiá-lo, entre elas Sheffield, na Inglaterra, e Paris. A própria Coreia do Sul tem planos de retirar cerca de cem estradas elevadas para trazer à luz rios que foram soterrados. Seria, talvez, uma ideia interessante para São Paulo, que tem dezenas de rios correndo sob as ruas da cidade.
As estratégias de limpeza são as mais diversas. Vão desde a instalação de fontes de ar subterrâneas ou máquinas de fazer bolhas para oxigenar a água até a colocação de plantas, ostras e mexilhões no rio (como foi feito este ano no rio Delaware, em Nova Jersey, nos Estados Unidos), porque esses organismos são bons recicladores de nutrientes e ajudam a levar partículas suspensas para o fundo, permitindo que a luz penetre e combata a turbidez. Incluem também desassoreamento (a retirada de detritos do fundo para aumentar a vazão do rio, pois o movimento carrega a sujeira) e mutirões de cidadãos para plantar árvores, como foi feito no Poplar, no nordeste de Minnesota, nos Estados Unidos. Lá os detritos provenientes das casas e das pistas de esqui se acumulavam numa área de curvas do rio, que se tornava parada; a plantação de árvores e colocação de pedras protegeu o rio da sujeira.
Também são cruciais as ações de conscientização da população. “Uma cena clássica é o sofá jogado no rio”, diz Safira. “Papel de bombom, bituca de cigarro… tudo isso, quando chove, vai parar no rio. É um outro tipo de poluição, aparentemente menos nociva, mas demanda um bom dinheiro para que se limpe.”
“A gente está sempre cobrando uma agenda de política pública, mas cadê a ação da sociedade?”, questiona Tomas.
Para que a despoluição dê certo, enfim, é preciso combinar todas as ações que forem possíveis. Como disse Robert Traver, um professor de engenharia especialista em rios urbanos, à revista Time: “Nada no plano de despoluição de Paris para o rio Sena é original. Mas colocá-lo em prática é original.”
Publicado originalmente no Insper, em junho de 2023.
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