Triangulação

8 de novembro de 2024

Um ipê é mais que um ipê.

“Você quer que eu tire uma foto sua?”

Olho pra trás e vejo, a uns 5 metros de distância, um rapaz sorrindo pra mim. Estou numa comercial do Plano Piloto, embaixo de um deslumbrante ipê, absorta em fotografar suas flores amarelas caídas no chão sob a luz do fim de tarde.

(Sim, é um costume brasiliense fotografar ipês, ou se fotografar com ipês. Acho que eles nos ajudam a aguentar a seca, sei lá.)

Eu sorri de volta, agradeci e recusei. Eu realmente não queria uma foto minha com o ipê. Hora nenhuma tive medo de que, se eu aceitasse, ele talvez pudesse sair correndo com meu celular. Ele estava sendo genuinamente gentil, talvez imaginando antecipar-se ao que eu pudesse desejar, ou reproduzindo a oferta que gostaria que lhe fizessem. Ele continuou seu caminho e eu sorri de novo, pensando nesse mimo de urbanidade.

William Whyte (já falei dele aqui) finaliza seu livro “A vida social dos pequenos espaços urbanos” com um capítulo chamado “Triangulação”. Segundo ele, ela seria o processo pelo qual algum estímulo externo cria uma ligação entre as pessoas e leva estranhos a conversarem entre si como se não o fossem. Esse estímulo externo pode ser um objeto, uma pessoa, uma paisagem.

No meu caso foi um ipê.

Não imagino que alguém tenha plantado aquele ipê específico, pensando: “Hum, algum dia este ipê vai crescer, ficar lindo e ser motivo de conversas amigáveis entre estranhos”. Como ele, os elementos deflagradores de contato visual, sorrisos e pequenas conversas podem ser absolutamente aleatórios. Se duas pessoas estivessem refugiando-se de uma forte chuva na parada de ônibus e um trovão as assustasse tanto que ambas gritassem ao mesmo tempo, talvez elas se entreolhassem, começassem a rir juntas e trocassem algumas palavras.

Há fatores menos aleatórios, no entanto. Artistas de rua funcionam muito bem como agentes de triangulação. Eles procuram os espaços públicos mais movimentados, com a intenção de expor sua arte e chamar a atenção das pessoas. Mágicos, dançarinos, musicistas, atores, pintores criam um pequeno grupo de curiosos ao seu redor que, eventualmente, vão terminar comentando algo: “Nossa, essa caricatura que ele está fazendo dela está perfeita!”; “Sim! Esse cara é bom, eu já o vi fazendo outras!”

Pessoas sendo elas mesmas também podem ser agentes de triangulação. Crianças, então, parecem ter sido feitas para isso: nos brindam com um universo de coisas para se comentar, se encantar, sorrir. Animais de estimação também. Minha tia Doca costumava dizer que nunca poderia se mudar: “Eu não vou fazer amizade com ninguém, porque não tenho criança e nem cachorro”. Na verdade, talvez ela não precisasse ter crianças ou cachorros: bastaria ela se prestar a ser triangulada (aqui já sou eu, brincando com a expressão do Whyte) por crianças e cachorros! É só não esquecer que, para as pessoas serem trianguladas, elas precisam compartilhar o mesmo espaço público. É preciso que haja copresença.

A triangulação não ocorre apenas em espaços públicos, é verdade: pode ocorrer num ônibus, num estádio de futebol ou dentro de uma loja. Mas é no espaço público que a gente pode contar menos com a aleatoriedade ou a transitoriedade das pessoas, e implantar objetos mais perenes, que possam ter também a função de trianguladores. Elementos estimulantes, divertidos, interessantes, surpreendentes, belos, que sejam pensados para também cumprir esse papel. Como um ipê… com intenção.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

Compartilhar:

Arquiteta, professora da área de urbanismo da FAU/UnB. Adora levantamento de campo, espaços públicos e ver gente na rua. Mora em Brasília. (ceep.unb@gmail.com)
VER MAIS COLUNAS