Envelhecer é coletivo, mas a cidade insiste no contrário

4 de novembro de 2025

As cidades brasileiras foram planejadas como se ninguém fosse envelhecer. O urbanismo que herdamos trata a velhice como um imprevisto, não como destino comum. São Paulo talvez seja o exemplo mais emblemático: é a metrópole da pressa, do desrespeito ao lugar dos idosos na fila dos caixas de supermercados, das calçadas que mais parecem testes de equilíbrio do que infraestrutura — para ficar só em três exemplos de descaso com os mais velhos. O corpo que envelhece não cabe nessa engrenagem. O idoso é sempre um à margem.

É o desenho urbano que aprofunda tal exclusão. Quem envelhece em bairros da assim chamada “cidade formal” ainda pode contar com o posto de saúde a poucas quadras, o estabelecimento comercial menos cheio, infraestrutura digna. Nas periferias, a velhice é outra: meses de espera por atendimento médico, mercados, lojas e ônibus lotados, ladeiras sem calçadas. O tempo da vida se mistura ao tempo da cidade, e ambos se tornam mais pesados quando o CEP não ajuda. 

O cenário demográfico brasileiro há anos indica a curva de envelhecimento, no entanto, o tema ainda é sumariamente ignorado. As cidades, em vez de continuarem crescendo, passarão a encolher, e o processo de emigração das metrópoles será ainda maior. A taxa de fertilidade projetada é inferior à taxa necessária para repor a população. Na prática, vamos envelhecer com uma infraestrutura precária e desassistida enquanto o poder público priorizar a construção de creches no lugar de prestar atenção às necessidades de replanejamento urbano dos grandes centros. 

As políticas públicas tratam a velhice mais como protocolo do que prioridade. Programas de envelhecimento ativo, centros de convivência, oficinas culturais existem em relatórios e festivais de inauguração, contudo, a eficácia deles no cotidiano é limitada. Faltam integração entre secretarias, planejamento urbano que contemple as reais necessidades dos municípios compatíveis com as demandas da população, tais como: equipamentos e espaços públicos adequados, oferta dos serviços de saúde mais especializados e acessíveis e programas de governo realmente eficazes. Um caminho possível é transformar políticas isoladas em redes interconectadas, nas quais as necessidades são pensadas em conjunto. 

Na saúde, o desafio é mais visível. O Brasil envelhece rápido e pobre, enquanto a rede pública tenta apagar incêndios em vez de preveni-los. Doenças crônicas que poderiam ser acompanhadas em atenção primária lotam hospitais. Entretanto, existe oportunidade para inovação se saúde pública e privada se entenderem como vetores complementares. Planos particulares poderiam investir em prevenção, programas domiciliares e monitoramento contínuo, enquanto a rede pública garantiria cobertura universal e equidade. Se ambos enxergarem o envelhecimento sob a ótica da saúde, e não apenas da doença, o cenário certamente se modificará.

O curto prazo exige pragmatismo: bancos em praças, sombra nas ruas, corredores de ônibus que funcionem de fato etc. O médio prazo precisa contemplar ousadia: redesenhar a cidade para que envelhecer não seja sinônimo de confinamento ou guetificação. No longo prazo, deve-se reconhecer que o idoso não é só consumidor de um “mercado prateado”, e sim parte da inteligência urbana.

Envelhecer é inevitável. Envelhecer em cidades que aceitam essa condição como parte do seu próprio futuro, ao menos por enquanto, é privilégio de poucos. Já passou da hora de inverter essa lógica e pensar a cidade a partir da velhice para que todos possam viver melhor em qualquer época de sua existência.

Gabriela Vasconcelos
Economista, urbanista social e coordenadora de Projetos do Centro de Estudos das Cidades – Laboratório Arq.Futuro do Insper.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

Compartilhar:

VER MAIS COLUNAS