Caminho todos os dias por São Paulo e duas leituras recentes, abordando cidades melancólicas, me ajudaram a refletir a respeito do que vejo e sinto nessas caminhadas. A primeira delas foi o romance “Solenoide”, do romeno Mircea Cărtărescu. Nele, Bucareste é apontada como “a cidade mais melancólica do mundo”, tanto pelo fato de o melancólico narrador ter sempre vivido lá, como também pela atmosfera cinzenta e fantasmal da capital empobrecida que passou décadas sob um regime ditatorial.
A outra leitura foi “Istambul”, de Orhan Pamuk, no qual a melancolia da cidade turca é associada à decadência do Império Otomano, do qual foi capital, e à certeza de que seu auge ficou no passado e não volta mais. “Os restos de uma gloriosa civilização do passado são visíveis por toda a parte. Por mais que estejam malcuidados, […] abandonados ou encurralados por monstruosidades de concreto, as grandes mesquitas e outros monumentos da cidade, bem como os detritos menores do império [são] visíveis em todas as ruas secundárias e em cada esquina”, escreve Pamuk. “O povo de Istambul simplesmente leva sua vida adiante em meio às ruínas”.
No cinzento e às vezes fantasmal Centro de São Paulo, também caminho por ruínas de um passado glorioso que, ao contrário de Istambul, foi ontem. Afinal, apenas poucas décadas separam o auge de determinadas construções da sua completa decadência atual. E não é que a cidade tenha entrado em declínio: ela continua rica, próspera, mas segue refém de uma espécie de fetiche da novidade, de uma cultura de sempre construir e crescer e explorar novas fronteiras, abandonando o que foi novidade há pouco tempo. Deixar o passado para trás talvez não seja apenas algo incidental, mas a nossa forma de seguir em frente.
“No momento em que se levantam os novos bairros, quase não são elementos urbanos: brilhantes demais, demasiadamente novos, exageradamente alegres para isso. Lembrariam antes […] uma exposição internacional, edificada para alguns meses. Depois desse prazo, […] as fachadas descascam, a chuva e a fuligem aí traçam seus riscos, o estilo cai de moda, o ordenamento primitivo desaparece sob as demolições impostas, paralelamente, por uma nova impaciência”, escreveu Claude Lévi-Strauss sobre São Paulo no clássico “Tristes Trópicos” (o qual já mencionei em outra coluna e é citado por Pamuk ao comparar a melancolia turca à dos países tropicais). “A evocação de lembranças de quase 20 anos atrás assemelha-se à contemplação de uma fotografia fenecida”.
As ruínas presentes em Bucareste, Istambul e São Paulo (particularmente no Centro) são a face mais visível da melancolia desses espaços, que também têm em comum a presença constante da pobreza e da miséria. Nada sei das discussões de planejamento urbano dessas duas cidades tão distantes e tão próximas, mas pensando nos desafios de São Paulo, debater tecnicidades sem encontrar saídas para a pobreza ou levar em consideração o fetiche da novidade e a problemática relação da população com sua história chega a parecer perda de tempo e dinheiro.
Não é à toa que tanto esforço para recuperar o Centro às vezes pareça em vão. A cada obra recente que observo em minhas caminhadas, a primeira imagem que me vem à mente é a daquele meme de alguém passando o rodo na praia, num esforço irônico e inútil contra as ondas do mar. Os chafarizes do Mirante Nove de Julho, por exemplo, revitalizados em 2017 após a concessão do Mirante, pelo menos desde 2023 (até a última vez que passei por lá) pareciam abandonados há décadas. O Vale do Anhangabaú, reaberto no final de 2021 após ter sido completamente reformado, encontra-se sujo, encardido, repleto de grades protegendo fontes de água que quase nunca funcionam e já descaracterizado por grelhas de drenagem de diferentes tipos e materiais. A famosa esquina da Av. Ipiranga com a São João nem parece ter sido reformada há tão pouco tempo. E cada louvável retrofit, realizado com incentivo público e empenho de empresários corajosos e apaixonados, está quase sempre cercado por outros tantos prédios abandonados, pichados, em ruína. Flores no deserto. A preferência dos grandes empresários do setor e da elite econômica, infelizmente, é pela construção de novos edifícios.
O monumento do Largo da Memória, o mais antigo de São Paulo, também pichado e deteriorado, talvez nem devesse mais ser recuperado, nunca mais. Pois não consigo pensar em melhor representação da melancolia dessa cidade e do seu descaso com a “memória do zelo do bem público”. Talvez seja nessa aparentemente inevitável tendência ao abandono e à autodestruição, afinal, que resida a nossa mais profunda essência.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.