“Não há guarda-chuva contra o tempo, / rio fluindo sob a casa, / correnteza carregando os dias, os cabelos”.
Os versos do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999) se referem, claro, à inexorável condição humana, mas fazem pensar particularmente na curva de envelhecimento que atinge a população brasileira – e, sobretudo, em como o país insiste em não lhe dar a devida atenção. Em 2022, o total de pessoas com 65 anos ou mais aumentou 57,4% em relação a 2010, passando de 7,4% para 10,9% dos brasileiros. Em 2030 – ou seja, ao final da “Década do Envelhecimento Saudável”, de acordo com a definição da Assembleia-Geral das Nações Unidas – o Brasil terá a 5ª população com idade mais avançada em todo o planeta e não estamos, nem de longe, preparados ou nos preparando para isso. Ainda temos um olhar ultrapassado de sermos “o país do futuro”, o que nos faz desprezar as reais necessidades dos idosos nas urbes brasileiras – como se eles, como qualquer pessoa, de qualquer faixa etária, não devessem ter assegurados o seu “direito à cidade”.
Um exemplo clássico é o da dificuldade dos idosos utilizarem calçadas em razão de uma mobilidade limitada. No entanto, é muito simples ampliar a lente e identificar fatores adversos a essa população. Trago o recorte para a saúde porque definitivamente não somos um país que investe no bem-estar, em estilos de vida saudáveis – e as consequências dessa negligência custam caro, para todos e cada um.
Parte da demanda da população de idosos diz respeito a atividades físicas, centros de acolhimento psicossocial, higiene pessoal, cuidados paliativos, alimentação adequada e administração de medicamentos. Para todas essas necessidades precisamos de profissionais qualificados – e aqui temos mais um déficit que inviabiliza a prestação de serviços qualificados. Considerando os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Censo do IBGE, as cidades precisam se reciclar e considerar que têm de ser funcionais para aqueles que a habitam, devendo fazer parte do planejamento urbano considerar a formação e a capacitação de profissionais especializados no atendimento ao idoso.
Do mesmo modo, os gestores precisam investir em equipamentos públicos que atendam a essa população. Tais equipamentos, todavia, têm de levar em conta os diferentes tipos de necessidades para diferentes idosos; do contrário, não serão inclusivos. De toda forma, a cultura do cuidado não pode estar relacionada apenas à saúde física ou mental tendo a doença como parâmetro: ela deve convergir também para atividades que façam surgir nas pessoas idosas uma redescoberta do prazer pela vida.
Não fosse por outro motivo, de caráter mais humanitário, o investimento nessa perspectiva significa também amparar a economia do Brasil, uma vez que, em algum momento, a população de idosos será a principal consumidora de bens e serviços no país. A mudança no panorama demográfico brasileiro não deve ser vista como uma ameaça e sim como uma oportunidade para apostarmos em cidades mais amigáveis não só pela ótica urbanística como também pela qualidade de vida oferecida aos mais velhos.
No momento em que os pré-candidatos às prefeituras de todo o território nacional começam a montar seus planos de governo, não se pode deixar de sublinhar que é preciso ter no horizonte urbes centradas na pessoa idosa como um dos caminhos para o estabelecimento de cidades sustentáveis e resilientes – um “guarda-chuva” mais resistente para atravessar o envelhecimento com maior dignidade.
Gabriela Vasconcelos
Coordenadora de Projetos e Educação Executiva do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.